Regressado de duas semanas no país profundo, encontrei um insólito e estranhíssimo ar de desconsolo na praceta.
Cruzei-me com o Júlio Sancho, segundo pandeireta do rancho, que não ousei cumprimentar, tão macambúzio e ensimesmado ele vinha. No talho do Ataíde, facalhões flébeis fendiam a mudez triste dos clientes. À porta da retrosaria, a dona Rute pesarosa. Na paragem para Pirescoxe, gente derrotada e cabisbaixa. O Quirino Merencório varria de queixo caído a sargeta com um lúgubre basculho camarário… Até que no Elias, aonde fui por azeitonas e cebolas, perguntei à Lídia do cabeleireiro, que de cenho carregado pegava num garrafão de água de Monchique,
a de melhor pH para os rins:
- Que aconteceu, ó Lídia, que vejo tudo com cara de enterro?
- Então não sabe? Morreu o Manel, diz que de coisa má.
- Estou a sabê-lo, cheguei esta manhã de sítios onde não há SIRESP.
Mas que Manel? Morrem tantos…
Fui-me inteirar do noticiário urbano.
Ainda não estou em mim. Deparou-se-me tal enxurrada elegíaca e um tão demencial tsunami hagiográfico que só por milagre da Páscoa os arruamentos da capital continuam transitáveis. Coisa nunca vista.
«A Assembleia da República aprovou esta quinta-feira um voto de pesar pela morte do empresário Manuel Reis, fundador do Lux-Frágil.
O voto de pesar foi apresentado pelo PS e foi aprovado pelos restantes deputados. […]»
O Diário de Notícias passou-se.
DN, 26.Mar.2018, papel, página inteira — Lina Santos, "
Morreu Manuel Reis, o homem que mudou a noite de Lisboa"
DN, 26.Mar.2018, online — "
Obrigada Manel, por todas as Danças"
[E se aprendessem a virgular?
Obrigada, Manel, s.f.f.]
Fernanda Câncio, suma sacerdotisa da campanha manélica, lançou o mote a três semanas de distância:
DN, 05.Mar.2018 — "
Trabalhar pela liberdade"
DN, 27.Mar.2018, chamada na capa primeira página * mais duas páginas inteiras — "
O soldado da luz"
**
DN, 02.Abr.2018 — "
Ficar à porta da história"
O Público passou-se.
Capa Primeira página * — "O homem que inventou a Lisboa cosmopolita"
Vítor Belanciano — "O homem com quem o país se tornou moderno"
Augusto M. Seabra — "E no início houve o Manuel Reis"
Miguel Esteves Cardoso — "E agora, Manuel, o que é que vai ser de nós?"
O Observador passou-se.
Testemunhos de Joaquim Albergaria, Pedro Ramos, Joana Vasconcelos, Pedro Mendes, Pedro Faro, Kaspar (João Pires), Alexandra Moura, Luísa Ferreira, Ana Salazar, André e. Teodósio, João Cepeda, Vasco Araújo, Inês Maria Meneses, João Pedro Vale, Ana Louro, José Teófilo Duarte, Mário Matos Ribeiro, Susana Pomba, Marinela Girão, Filipe Faísca, Pedro Cabrita Reis e Dino Alves.
Eixo do Mal, 01.Abr.2018:
Mas o Sol é que se passou mesmo.
António Costa — Fernando Medina — João Soares — Daniel Oliveira — Pedro Marques Lopes — Inês Maria Meneses — Rita Ferro Rodrigues — Eduardo Pitta.
O engenheiro técnico José Manuel dos Santos, talvez o socialista que mais bem escreve em Portugal [co-redigiu recentemente com o doutor António Soares um editorial podre de bonito no
n.º 1 da Electra, "
E nos corredores ressoam as palavras" - verso de Sophia de Mello Breyner Andresen. Vai
um cheirinho?], não se acanha:
«
No momento da sua morte, a homenagem que a democracia lhe deve dever é a atribuição da Ordem da Liberdade.» —
Sol/bi, 30.Mar.2018
Clara Ferreira Alves sonha com o Manel na toponímia:
«
Mereces o nome num empedrado de Lisboa e do Bairro Alto mas não sei se uma rua de Lisboa e do Bairro Alto merece o teu nome.» —
Expresso/E, 30.Mar.2018
O actor André e. Teodósio, paneleiro estimável:
«Digamos que todas as matérias sociais, políticas, artísticas, etc. que ainda hoje são debatidas e se tornam realidade passam por conquistas históricas, posicionamentos identitários e disponibilidades afectivas que sem ele não teriam acontecido. O seu desaparecimento só pode ser honrado com o seu lugar no Panteão Nacional. Quem duvida disto vive em negação!»
Nem todos ensandeceram, porém.
João Miguel Tavares veio no
Público de 31.Mar.2018 pôr água na fervura — "
Nós, os que esperávamos à porta do Lux".
Finalmente, António Guerreiro — "
A ideia de geração",
Público/Ípsilon, 06.Abr.2018 — traz sobriedade à perspectiva do "efeito Manuel Reis" como "fenómeno superficial".
Quanto ao presidente-arlequim,
admoestado no Sol, aprecie-se-lhe por uma vez o comedimento.
Parada do orgulho alternativo:
Fernando Medina, Fernanda Câncio/Rita Ferro Rodrigues, Gabriela Sobral, Margarida Pinto Correia, Joana Mortágua, Clara Ferreira Alves/Nuno Artur Silva, João Botelho, Paulo Portas/Catarina Portas, Eládio Clímaco, João Soares, Margarida Martins, Luís Borges, Joana Vasconcelos, Lili Caneças, Teresa Ricou, Rita Blanco, Catarina Vaz Pinto, Manuel Maria Carrilho...
Em suma,
Manuel Reis
[Albufeira, segunda-feira, 29.Jul.1946 – Lisboa, domingo, 25.Mar.2018]
Sem prejuízo da Ordem da Liberdade, da toponímia e do Panteão Nacional, cada coisa na sua vez e na sua sede, proponho que se transmute de imediato o
Lux Frágil em
IPSS. Sem o que Portugal mal honrará os seus melhores.
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* Recebi de
Manuel Matos Monteiro o seguinte reparo que agradeço: «
Os jornais não têm capa, mas primeira página.» [Corrigido em 08.Mai.2018]
** A jornalista Fernanda Câncio, grande repórter que no DN grafa
deus com minúscula e Manel com maiúscula, abastece-se manifestamente em fontes espúrias.
Escreve ela:
«[…]
Rodeia-te de rosas, ama, bebe, dança e cala. O mais é nada. Álvaro de Campos, o Pessoa estóico, escreveu a frase que podia ser o mote de Manuel Reis - só faltava esta palavra, dança. Adeus a um revolucionário para quem Lenine, como para Godard, se citava ao contrário: a estética como ética do futuro. De agora.
[…] Tudo tão pouco, para continuar a citar Álvaro de Campos.
[…]»
Já
em 08.Out.2008, no jugular, cometera o mesmo atropelo na citação [«
Rodeia-te de rosas» em vez do lídimo pessoano «
Circunda-te de rosas»].
E, azar da suma sacerdotisa manélica, não é Álvaro de Campos:
«Tão cedo passa tudo quanto passa!
[...]
Circunda-te de rosas, ama, bebe
[...]»