Na crónica “É a falta de cultura, estúpido” *, de sábado passado - Expresso/Revista, 21.Jul.2012
- Clara Ferreira Alves profere o seguinte dislate, a meu ver muito grave e sem aparente
desculpa:
«num tempo em que o partido
comunista tinha uma elite intelectual e de resistência inspirada por um chefe
que, aos 80 anos, quase cego, resolveu
traduzir Shakespeare. Cunhal traduzindo o "Rei Lear" [...]».
Sucede
que
2-
a tradução em causa fê-la Cunhal, sim,
mas por volta dos 40 anos, na cadeia. Viria a ser publicada em fascículos, sob
pseudónimo, na década de 60 do século XX, já o tradutor escapara de Peniche e de
Portugal. Nem a eventualidade de CFA se ter baralhado com 2002, ano em que a Caminho publicou uma 2.ª edição da obra, serve de desculpa ou atenuante, antes pelo contrário: nessa
altura, Cunhal ia nos 89 anos.
Em
suma, um imperdoável e clamoroso espalhanço de leviandade jornalística em que
qualquer bom revisor, dos que dantes havia mas que os jornais entretanto
dispensaram em nome duma poupança nas suas tesourarias inversamente proporcional ao
desrespeito para com os leitores, poderia ter acudido à doutora
Clara Ferreira Alves.
Mais diz a doutora Clara:
«John Carlin, o sul-africano
autor do livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood,
"Invictus", [...]»
Sucede que, para desgraça da cronista,
1- John Carlin é cidadão
britânico, filho de mãe espanhola e de pai escocês, nascido em Londres em 1956 [curiosamente na mesma colheita de CFA];
2- o título do livro de John
Carlin em que Clint Eastwood se baseou para fazer o “Invictus” é "Playing the
Enemy: Nelson Mandela and the Game that Made a Nation".
Assim, a frase certa seria «John
Carlin, o autor inglês do livro que foi adaptado ao cinema por Clint Eastwood,
"Playing the Enemy: Nelson Mandela and the Game that Made a Nation", [...]».
Diz, a terminar, a doutora
Clara Ferreira Alves:
«Como bem disse Vargas Ilosa,
em vez de discutirmos ideias discutimos comida.»
e ainda:
«A gastronomia é uma nova
filosofia. Ferran Adriá é o sucessor de
Cervantes e de Ortega Y Gasset.»
Quanto
ao acento no Adrià [grave é como pertence] e ao y maiúsculo
no Ortega y Gasset, fiquem essas por conta de distracção simples ou de revisor
burro supondo, sei lá, que Ortega tenha sido um espanhol e Gasset outro. [Por
que raio me está a vir à lembrança o Valter Hugo Mãe?]
No
que me custa fiar, embora sem condições de o poder taxativamente infirmar, é,
dadas as inexactidões que precedem, no dito atribuído ao Vargas Llosa tal como CFA o reproduz. Não sei porquê, cheira-me a mais uma contrafacção adaptada e simplificada pelo
ouvido ligeiro da jornalista. Com
efeito, numa entrevista publicada em 13.Abr.2012 no El Cultural, suplemento semanal do El Mundo, achava o Nobel peruano:
«En un mundo en el que las pasarelas de la moda o las cocinas son los referentes centrales de la vida cultural y están suplantando al arte y la filosofía, no se tiene la misma idea de cultura que entonces: hay una frivolización y un facilismo que ha desnaturalizado el concepto mismo de cultura, y hemos perdido los valores que la sostenían: lo verdadero se confunde con los fraudes, y hay, hemos sufrido, a demasiados impostores.»
Não cheira?
Outra passagem da pluma caprichosa em apreço:
«O artista trabalha para o 'mercado', tal como o jornalista, sujeito
ao rating das audiências e dos
comentários online.»
Citando pela última vez Clara Ferreira Alves:
«quando digo nós digo o jornalismo na sua decadência e
euforia suicidária [...]»
Quod erat demonstrandum.
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* Caso para dizer que, com este título inadvertidamente irónico e masoquista, julgando que se benzia a criatura partiu a testa.
De resto e na essência, uma boa e pertinente lauda de Clara Ferreira Alves.