Não oferecia dúvida a nenhum olhar minimamente atento que a conversa de 10 minutos e picos com que o Presidente da República veio, pelas 17h00 de anteontem, explicar na TV a promulgação do Orçamento do Estado consistia de
texto meticulosamente estudado e previamente escrito. Dissimulando uma espontaneidade de gato escondido com rabo de fora, Marcelo lá foi seguindo, certinho, o teleponto até que
ao minuto 08:55 se entaramelou na leitura:
«Nós sabemos que como orçamento-compromisso houve reservas de parte a parte e que porventura não este o governo, não é o orçamento que o governo teria preferido.»
. Constança Cunha e Sá- Há aqui um registo completamente diferente. O passeio pelos jardins, o facto de estar sentado, o facto de não ser uma comunicação escrita. Que me lembre deve ser a primeira comunicação ao país de um Presidente …
José Alberto Carvalho- Não escrita!
Constança- … não escrita. Portanto, tudo isto é de certa forma surpreendente.
. o Presidente, que falou de improviso num pouco comum horário das 17h00, diferente das 20h00 que tantos governantes utilizam para fazerem as aberturas dos noticiários.
. Sentado, de improviso — mas que Presidente é que faz uma comunicação ao país de improviso? —, este foi mais um comentário que podia ter continuado com um “Judite, ainda temos tempo para ir aos livros?”
. o Presidente da República falou de improviso e elencou as razões pelas quais deu luz verde ao OE.
. E Marcelo marcou a diferença com discurso de improviso
Etc.
Que porcaria de jornalismo é este?
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Aproveito para meia dúzia de impressões requentadas que conservo daquela estapafúrdia quarta-feira, 9 de Março de 2016, dia da posse de Marcelo, o mais cartilagíneo dos políticos, a mais azougada das criaturas, até agora uma espécie de presidente-arlequim.
10h11- Marcelo jura e torna-se PR.
10h18 – Ferro Rodrigues discursa.
«Eleito “de forma clara”, discursou ainda o Ferro Rodrigues, “a partir de hoje, vossa excelência” — virando-se para Marcelo Rebelo de Sousa — “é o nosso Presidente, o Presidente de todos os portugueses. Desejo-lhe as maiores felicidades”.»
Contesto. O que ouvi e vi:
«
A partir de hoje, Vossa Excelência, Marcelo Rebelo de Sousa — Ferro Rodrigues
vira-se para Aníbal Cavaco Silva, à sua esquerda,
minuto 01:25 —,
é o nosso presidente, é o presidente de todos nós, o presidente de todos os portugueses.»
Era.
Que tal?
.
Diogo Ramada Curto-
o que nele mostrou foi um somatório de referências obsoletas, para não lhes chamar bacocas.
. Plúvio, valendo-me de
Alexandre O'Neill-
Uma coisa em forma de assim, redonda, limpinha, demagógica qb, patrioteira, exaltante, optimista, para agradar a todos, com citações de Mouzinho de Albuquerque, Adam Smith, António Lobo Antunes e Miguel Torga. Atenhamo-nos à
parte final:
«Mas a resposta vem de um dos nossos maiores, Miguel Torga. Que escreveu em 1987, vai para trinta anos:
"O difícil para cada português não é sê-lo; é compreender-se. Nunca soubemos olhar-nos a frio no espelho da vida. A paixão tolda-nos a vista. Daí a espécie de obscura inocência com que actuamos na História. A poder e a valer, nem sempre temos consciência do que podemos e valemos. Hipertrofiamos provincianamente as capacidades alheias e minimizamos maceradamente as nossas, sem nos lembrarmos sequer que [Torga escreveu, e bem, lembrarmos sequer de que] uma criatura só não presta quando deixou de ser inquieta. E nós somos a própria inquietação encarnada. Foi ela que nos fez transpor todos os limites espaciais e conhecer todas as longitudes humanas…
... Não somos um povo morto, nem sequer esgotado. Temos ainda um grande papel a desempenhar no seio das nações, como a mais ecuménica de todas. O mundo não precisa hoje da nossa insuficiente técnica, nem da nossa precária indústria, nem das nossas escassas matérias-primas. Necessita da nossa cultura e da nossa vocação para o abraçar cordialmente, como se ele fosse o património natural de todos os homens."
Pode soar a muito distante este retrato, quando se multiplicam, na ciência, na técnica, na criação da riqueza, tantos exemplos da inventiva portuguesa, entre nós ou nos confins do universo. [Levemente exagerado. Ou será que a NASA conseguiu identificar num cantinho da A1689-zD1 gases de um tuga que ali se peidou?]
E, no entanto, Torga viu o essencial.
O essencial, é que continuamos a minimizar o que valemos.
E, no entanto, valemos muito mais do que pensamos ou dizemos.
O essencial, é que o nosso génio – o que nos distingue dos demais – é a indomável inquietação criadora que preside à nossa vocação ecuménica. Abraçando o mundo todo.
[Mas que merda de vírgulas são estas, senhor Presidente? Ou esta — "O essencial, é" —, repetida aqui.]
Ela nos fez como somos.
Grandes no passado.
Grandes no futuro.
Por isso, aqui estamos.
Por isso, aqui estou.
Pelo Portugal de sempre!»
[Anoto que Marcelo, bailarino, inverteu a ordem por que Torga escreveu os parágrafos: o que começa por "O difícil" pertence à página 216 e o que começa por "Não somos" à página 215 do livro "miguel torga – diário, volumes XIII a XVI"]
«É uma encenação de espontaniedade que Marcelo sabe muito bem fazer.»
Foi isto.