Sobre os exames de Português e de Literatura
Portuguesa
«[…]
A dificuldade
reside sobretudo em nos colocarmos em perfeita sintonia com as perguntas, em
aceder à sua lógica, em aceitar as evidências interpretativas que elas
pressupõem. Em suma: em falar o mesmo “idioma” que elas. Trata-se sempre de
perguntas que não convidam o aluno a ler e interpretar, mas a repetir leituras
e interpretações que lhe foram fornecidas.
[…]
A doutrina
correctiva que acompanha cada prova tem a função de não permitir qualquer
discrepância, aspira a uma justiça
infalível e universal: introduz o rigor do regime digital no mundo do
analógico.
[…]»
- “A Teologia dos exames”, 28.Jun.2013
Sobre a “Obra Completa” do Padre António Vieira – 30 volumes – em edição pelo Círculo de Leitores
«[…]
Um Padre António Vieira lido pura e simplemente em chave superficialmente barroca, com incidência exclusiva na exuberância retórica dos seus sermões (ou seja, a imagem de um Vieira que deleita com o seu engenho discursivo e representa um lugar supremo do génio linguístico português) é uma maneira de anular uma outra dimensão de grande amplitude que a sua obra contém, como podemos vislumbar em A Chave dos Profetas, por onde começou este projecto grandioso de edição da Obra Completa do Padre António Vieira.
Nota: Uma questão problemática, nesta edição, levantada com ênfase por Vasco Graça Moura*, é a aplicação das normas do novo Acordo Ortográfico, com o argumento de que ele está em vigor. Como neste momento são utilizadas pelo menos três normas ortográficas diferentes no espaço da língua portuguesa e não se sabe como é que vai ter fim a confusão instalada, a questão ortográfica levantada por esta edição é um sintoma eloquente da trapalhada causada pelo AO/90.»
- “Tão grande o génio, tão longo o delírio”, 28.Jun.2013
Sobre Francisco José Viegas e o Acordo Ortográfico
«Durante muitos anos, a cultura foi para Francisco José Viegas uma religião civil: ecuménica, extensiva, capaz das mais maleáveis operações de síntese. Até que um dia este soldado da paz se deixou recrutar e foi servir, como general, no campo de batalha. Não fez uma campanha gloriosa, nem tal se esperava, mas não seria correcto dizer que saiu com o rabo entre as pernas: mal recuperou os direitos civis, mandou a hierarquia que tinha servido – ou parte dela – “tomar no cu”. Começava aí uma saída dolorosa e declinada no gerúndio: tratava-se de ir saindo até que o ex- (do ex-secretário de Estado da Cultura) fosse completamente sacudido das suas vestes.
[…]
Desta vez, o ex-secretário de Estado da Cultura vem dizer que “o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa está cheio de normas ridículas que deveriam ser corrigidas ou simplesmente rasuradas” e que ele “não deveria ter entrado em vigor sem que estivesse encerrado o Vocabulário Ortográfico”. Nesta matéria - como na outra, escatológica - o ex- é muito mais claro e afirmativo do que o secretário de Estado e até podemos pensar que está a querer demiti-lo retroactivamente.
[…]»
- “Francisco José Viegas nunca foi secretário de Estado”, 05.Jul.2013
Sobre o comentário político e o português miserável de um catedrático, ex-ministro
«[…]
O que leva esta horda de comentadores — que ora passam do comentário à prática, ora da prática ao comentário — a repetirem-se sucessivamente? A resposta é fácil: estão convencidos de que o nome próprio basta para caucionar o que dizem, porque uma estereotipada encenação os coloca no lugar do sujeito-suposto-saber.
[…]
Talvez seja tempo de dizer que não é do “comentário político” que precisamos: é do comentário filológico e gramatical.
[…] dá erros tão crassos (Vítor Gaspar, na carta de demissão) que a sua “redacção” não passaria com sucesso pelos critérios de correcção que o Ministério do seu ex-colega Crato elaborou para os exames do Secundário. É ele que escreve que “essa urgência tornou-se inadiável”, quando quer dizer que a sua substituição, que antes era urgente, se tornou inadiável; é ele que escreve “estou convencido que”, em vez de “estou convencido de que”; é ele que comete este elementar erro de concordância: “Assegurar as condições internas de concretização são uma parte deste fardo”.
[…]»
- “A gramática como arma política” 12.Jul.2013
Sobre a degenerescência da política e o consenso
«[…]
Crise da política significa, como sabemos, o fim da sua autonomia, passagem a uma posição subalterna relativamente à economia (o que faz dos governos comités de negócios), despolitização do agir público, ideia hegemónica da opinião pública (isto é, uma ideia passivamente neutra da política), incorporação da ideologia da anti-política, perda das duas grandes subjectividades históricas de onde ela tinha retirado toda a sua força: as massas politizadas (que deram lugar à gente apolítica) e o Estado, que já não é concentração de poder e nem sequer já detém o monopólio da violência.
[…]»
- “Requiem pelos partidos”, 19.Jul.2013
Sobre o carisma na política, à luz de Max Weber
«[…]
a sua - de Max Weber - sociologia do carisma, assim como a sua reflexão sobre a política como profissão (ou vocação, Beruf), são uma paragem obrigatória para, entre outras coisas, percebermos o que está em causa quando ouvimos dizer que faltam, em Portugal e na Europa, “grandes homens”, políticos com carisma. Esta reclamação recorrente é altamente perigosa: o século XX foi o século das patologias do carisma, tanto o nazismo como o estalinismo foram formas extremas de dominação carismática.
[…]
Contra um axioma liberal que conheceu e conhece versões radicais, Weber defendeu que a ideia de cumplicidade entre capitalismo e democracia é uma infantilidade ideológica, o que o levou a esta pergunta inquietante sobre a qual devíamos estar todos a meditar: ‘Como é que a democracia e a liberdade podem ser mantidas a longo prazo sob as condições do capitalismo avançado?’.»
- “A boa dose de carisma”, 26.Jul.2013
Sobre os etólogos Bernardo Mendonça e Tiago Miranda, de Paço de Arcos, em interacção com «uma vistosa e alta figura loura» na Comporta
«[…]
A única coisa que vem perturbar esta harmonia pré-estabelecida é o nosso olhar viciado pelo demónio da reversibilidade, esse olhar que nos leva a concluir que não é o cão que foi condicionado, foi ele que condicionou o seu dono e sabe que, salivando, este lhe oferecerá comida. Ora, por esse mesmo fenómeno da significação reversível, nada garante que estes ricos que dizem brincar aos pobrezinhos no Verão da Comporta não sejam pobrezinhos que brincam aos ricos durante as outras estações.
[…]
Assim, por via da reversibilidade, o parque natural e temático da Comporta, observado na viagem exploratória de um etólogo da estação científico-laboratorial de Paço d’Arcos**, surge desvelado aos olhos do leitor em posição invertida: no rico laboratório da Comporta foi acolhido para estudo um exemplar do parque natural de Paço d’Arcos**. Como toda a gente sabe, a ciência, ao contrário do jornalismo, não é coisa de pobres.»
- “Brincar aos pobrezinhos”, 02.Ago.2013 [António Guerreiro, magistral.]
Sobre Como Uma Flor de Plástico na Montra de um Talho, de Golgona Anghel, editado por Assírio & Alvim
«[…]
O poema como uma contra-poesia ou um pensamento do contra, como manifestação herética perante a religião da literatura e as devoções de que ela é objecto, cruza-se aqui com uma muito respeitável tradição literária: a da sátira, a do escárnio, a do riso.
[…]»
- “No bordel das musas”, 02.Ago.2013
______________________________________
** Et pour cause... Sede do Expresso, cuja Revista dedicou 11 páginas à reportagem "Comporta, o refúgio hippie-chique", texto de Bernardo Mendonça e fotografias de Tiago Miranda [27.Jul.2013]:
Rua
Calvet de Magalhães, 242, 2770-022 PAÇO DE ARCOS