sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

Pedro Marques Lopes e o racismo estrutural

«Nós somos um país estruturalmente racista, valha-me Deus.»

«cá estarei eu para, se for mentira, pintar a cara de preto.»

Deus lhe valha.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

Bem hajam

Que consideração pode merecer um licenciado em Medicina que escreve «Obrigada a toda a equipa» para agradecer a três esculápios que lhe amanharam uma rinoplastia?
Pouca ou nenhuma.
Não admira que só sirva para «tapar buracos». 
Certo que o doutor Paulo Portas diz «Obrigadíssima!», mas esse, pelo menos, tem óptima dicção, escreve bem sobre cinema e é esperto como um alho.
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quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

Minudências ociosas

Na E, revista do Expresso de 25.Jan.2020.
«Eu sei que sendo vós pessoas normais, de casas arrumadas, podem não ter percebido o que se passou no Livre.»
Ó Henrique Monteiro, esta não parece sua. 

«O processo foi-se arrastando ao longo dos anos, porque foi preciso garantir o apoio financeiro do ICA [Instituto do Cinema e do Audiovisual], desenvolver um guião que nos satisfizesse...». 
Palavras de Pedro Santo recolhidas por Vasco Baptista Marques, na recensão (2 estrelas) a "O filme do Bruno Aleixo", co-realizado por João Moreira e Pedro Santo.
Pelo que vou observando e apesar do entusiasmo descomedido de Pedro Boucherie Mendes, o filme deverá ser coisa fraquinha. Mas não é esse o caso - admiro o boneco e simpatizo especialmente com João Moreira.
Foi na menção ao «apoio financeiro do ICA» — já agora, 100.000,00 euros — que me pus a congeminar: se a garrafa de água informa o consumidor comum acerca da mineralização total; se o pacote de batatas fritas declara obrigatoriamente a percentagem de sal, as bolachas dizem dos lípidos, a roupa denuncia o poliéster, o detergente da roupa conta tudo sobre tensoactivos aniónicos, o tintol sobre sulfitos e o azeite sobre a acidez, não seria pertinente que os filmes subsidiados com dinheiro público fossem obrigados a explicitar — nos cartazes, nos trailers e na ficha técnica, em Portugal — em quanto importou a contribuição do Estado?
Não seria isso transparência? Meu santinho Nuno Artur..., por que espera?
Assim o consumidor-cidadão sempre iria estando a par, por exemplo, do que os produtores de João Botelho recebem do erário para realizar as suas pretensiosas e estardalhaçantes fitas. Admito, escolho este exemplo porque embirro com João Botelho, incluindo nele o benfiquista furioso e o conspícuo dançarino no Lux Frágil. Que se há-de fazer? Devo-lhe um dos maiores barretes na minha cinefilia: "Quem és tu?", que vi no São Jorge em Nov.2001. Ei-lo todo, em sete supliciantes partes. *

No Jornal de Notícias de 26.Jan.2020. 
«[...] uma visão até plástica que remete para os lugares solarengos e frugais [...]»
Não gosto de VHM. Escreve mal e com afectação. Mas o que me desgosta mesmo é que um escritor português de calibre internacional, que em Julho de 2011 alagou Paraty de choro, desconheça que solarengo não é o mesmo que soalheiro ou ensolarado

No Público de ontem.
Gostei da prosa de Paulo Rangel — Brexit: say something, i’m giving up on you" —, à entrada da última semana em que vai conviver com os eurodeputados britânicos.
Pena foi isto:
«[...] As pipas e os toneis descomunais, o chão de terra à vista, as longas vigas de madeira [...]», em que a confiança no corrector automático e a falta de revisão pôs os tonéis a trovejar na 2.ª pessoa do plural do presente do conjuntivo...   
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* Ainda João Botelho.
Escuto a apresentação do badalado "Os Maias" [2014] - 600.000,00 euros do ICA.
Jorge Vaz de Carvalho, baritonando a abertura do trailer: «[...] preparando-se para salvar a humanidade enferma», pronuncia enferma a rimar com "palerma". Logo a seguir, outra personagem defende que «Portugal precisa é da envasão espanhola».
Que ortoépia é a desta gente? JVC traduziu "Ulisses", bolas! Teria obrigação de melhor dizer.

Chiça penico!

sexta-feira, 24 de janeiro de 2020

CFA, a mulher do brinco,

uma espécie de Meisje met de parel ibérica ...  na orelha direita.

Pergunto-me se é possível não embirrar com CFA.
Respondo: sou incapaz de não embirrar, não obstante a importância que lhe confiro lendo-a e escutando-a com perseverança e atenção.
Altiva, ególatra, amiúde pindérica, o que mais me decepciona na e portanto devo dizer jornalista, escritora, analista e opinante é a fiabilidade discutível do que informa e a reiterada deficiência com que pratica a língua. Mas sim, também a persona pública de referência que ela é.
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Recuperando o que escrevi em 2012, a jornalista CFA deve pouco ao rigor e nem sempre sabe o que diz.
«[...] Está na altura de introduzir na conversa os feitos do Vasco, não apenas como autor e editor mas como tradutor, divulgador, comissário da Expo-98*, uma ideia de António Mega Ferreira que ele acompanhou em cumplicidade e amizade. Foi, todos o sabemos, autor da melhor ensaística sobre Camões. "Camões e a Divina Proporção", de 1984**, é uma abordagem que mistura a intuição forense do advogado [...]  sei o que digo
* Vasco Graça Moura não foi comissário da Expo-98 que, aliás, só teve dois comissários: Cardoso e Cunha e Torres Campos
** Obra publicada em Abril de 1985

«[...] Em bom português, quanto mais me bates mais gosto de ti. Uma doutrina que, levada à letra, provoca mais ou menos uma centena de mulheres assassinadas por ano no nosso querido e cordato país [...]»
«CFA- A violência doméstica passa absolutamente sem um sopro de indignação em Portugal. A quantidade de mulheres assassinadas ...
Pedro Marques Lopes- 30 por ano.
CFA- ... 30, às vezes com tendência a subir. Uma vez eram 27 logo na primeira metade do ano. Acho que foi o ano passado, já eram 27. A quantidade de mulheres assassinadas neste país...»
Mulheres assassinadas em Portugal, por ano:
2004/40  -  2005/34  -  2006/36  -  2007/22  -  2008/46  -  2009/29  -  2010/44  -  2011/27 - 2012/41  -  2013/38  -  2014/45  -  2015/30  -  2016/22  -  2017/20  -  2018/28  -  2019/28.
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Subestima a atenção e a memória dos leitores e torna-se alarvemente ridícula.
Peço licença para repristinar o Plúvio [11.Mar.2014]: 
«Escrevi em tempos que Clara Ferreira Alves nem sempre é de fiar — calúnias dos blogues de direita, explicará ela
Nova ilustração:
Estava sentada numa cadeira ao sol, à beira de uma piscina pública de Coimbra. Sol de Junho. Nos altifalantes, a voz do Sérgio Godinho: 'Este é o primeiro dia do resto da tua vida'. […] Um dia quente de um Verão quente, estávamos em 75.
No fim da primavera de 1978, Sérgio Godinho lançou o seu 5.º LP, "pano-cru", de que constava – lado A, faixa 2 – "O primeiro dia", inédito. 
Três anos antes, em 1975, e a fiarmo-nos no jornalismo sério escoado pelo Expresso, a promissora e jovem caloira de Direito, Clara Ferreira Alves, sentada numa cadeira ao sol, à beira de uma piscina pública de Coimbra, escutava Sérgio Godinho a cantar "Este é o primeiro dia do resto da tua vida", decerto acometida por prodigioso transe proléptico e quem sabe se trauteando a letra ela própria também.
Investigação mais cuidadosa do episódio permitiu-me detectar uma pequeníssima e irrelevante inconformidade tudo indicando que devida a deficiência técnica dos altifalantes da piscina: de facto, Sérgio Godinho sempre cantou e tem cantado "Hoje é o primeiro dia" e não "Este é o primeiro dia".»

Bom, aquilo foi num Expresso de 2012. Acontece que José Mário Branco morreu em 19.Nov.2019 e vinha lá o Expresso de sábado, 23 de Novembro. Aí, apertada no prazo de entrega da "Pluma", CFA decidiu: tenho de voltar à piscina:  
«Era Junho e a piscina estava vazia. Nas cadeiras, meia dúzia de corpos olhavam o sol. Olhar o sol tinha-se tornado um hábito a seguir à revolução que em Abril fizera um ano, e o Verão anunciava-se quente. Era em 1975.
Naquele dia de Junho sem nuvens, na piscina municipal de Coimbra, meia dúzia de estudantes espraiados ouviam música nos altifalantes. Música revolucionária. Paz, pão, habitação. Baladas. O poema do António Gedeão, eles não sabem que o sonho comanda a vida, e a ‘Grândola’ do Zeca Afonso, o Adriano, o Fausto, o Sérgio Godinho. E a voz do Zé Mário Branco. As pessoas diziam Zé Mário como se o conhecessem, como se fosse um amigo que tivesse desembarcado em Santa Apolónia depois do exílio parisiense. A voz dele foi sempre diferente, um travo intelectual e uma secura poética que não diminuíam a toada revolucionária trespassada por versos difíceis de poetas difíceis. O O’Neill era um deles, e Camões, o mais complexo, o menos dúctil, o mais verboso. No altifalante, José Mário Branco dizia, como tinha profetizado, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades. Tinham mudado, se tinham. Logo a seguir, o Sérgio arrancou com este é o primeiro dia do resto da tua vida, * completando as estrofes camonianas. [...]»
Expresso/E, 23.Nov.2019

* E ela a dar-lhe com um disco de 1978 a tocar em 1975, não falando de este é...
O Plúvio não há-de morrer sem que morra alguém antes que faça a teenager CFA, nascida em 02.Ago.1956, tornar à piscina de Coimbra e ao Verão de 75, enviada pelo Expresso, dessa vez a embevecer-se com Demis Roussos nos altifalantes... Caramba, sempre e apenas o Zeca, o Zé Mário e o Sérgio apócrifo, até os altifalantes se enfadam.

Continuemos no ridículo, agora no ridículo pomposo, dando a palavra a quem observa melhor do que ninguém:
«Acabo de chegar à Índia
Nenhum documento conhecido atesta que Vasco da Gama, ao chegar à Índia num dia de Maio de 1498, tenha escrito: Acabo de chegar à Índia. Uma crónica da chegada à Índia feita por um português, respeitando as convenções retóricas da narrativa do chegamento só iria ser escrita quinhentos e vinte anos depois e publicada numa revista do jornal Expresso no dia vinte e nove de Dezembro do Ano da Graça de 2018. O documento atravessará a posteridade, cada leitor actualizará nesta frase um presente épico, glorioso: Acabo de chegar à Índia. Quando uma crónica de jornal, cinco séculos depois, redime uma falha da crónica do chegamento, por negligência do herói que o cometeu, podemos garantir que a estirpe dos descobridores lusitanos é perene e a nova do chegamento, embora longamente diferida e só agora lavrada por destemida argonauta, chegou até nós em documento de notável eloquência e sem filtros de escusada modéstia. A chegada à Índia pode ser um pequeno passo para a cronista, mas é um salto gigantesco para a humanidade.»
António Guerreiro, "Livro de recitações" | Público/Ípsilon, 04.Jan.2019
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Aos 40 anos de traquejo, CFA será porventura a jornalista mais pretensiosa e snobe da praça. Não raro, cosmopolita pindérica.
"A arte subtil de dizer que se f*da", de Mark Manson [2016], no mercado livreiro português desde 12.Jan.2018 através da chancela Desassossego/grupo Saída de Emergência, figura desde Fevereiro de 2018 no "Top" publicado no Expresso, mantendo-se desde Agosto daquele ano, há 75 semanas consecutivas, como o livro mais vendido entre os de não-ficção.
Assim, quando a trota-aeroportos CFA na "Pluma" pesporrente de 11.Mai.2019, "Giving a f*ck" | Expresso, vem dizer, ignorando as livrarias de Portugal e a informação do jornal em que escreve, como se desconhecêssemos o livro por cá,
«Comprei um livro estúpido num aeroporto. O gesto não é tão estúpido como parece. O livro perseguia-me de aeroporto em aeroporto há meses, e de livraria em livraria, da Barnes & Noble para a Waterstones, da Strand para a WHSmith. Estava na fase Pague um e leve dois, o que constitui uma vantagem quando não se tem confiança nem no livro nem no autor. Um dos colantes da capa assegurava que tinha sido o best-seller #1, de quê e quando não dizia. Outros asseguravam que da lista de best-sellers de “The New York Times”, o que não nos leva muito longe. A razão pela qual o livro vendia era óbvia, tinha f*ck no título, exactamente assim, com um asterisco no lugar do u. “The Subtle Art of Not Giving a F*ck”, A arte subtil de não ligar peva, com o subtítulo ‘Uma Abordagem Contraintuitiva para Viver uma Boa Vida’. [...]»,
estávamos fartos de nos 16 meses anteriores esbarrar em todos os escaparates e vitrinas com "A arte subtil de dizer que se f*da - Uma abordagem contraintuitiva para viver uma vida melhor", tradução de Fernanda Semedo.
Pulsão indomável - semana não, semana sim, importa reavivar aos leitores do Expresso o retrato de uma dama sofisticadérrima que frequenta livrarias finas estrangeiras e só nos quiosques letrados em inglês é que olha para as capas...
//
E a petulante gabarolice oceânica, senhores?
Mário Soares, John le Carré, Hotel Ritz...
«O John le Carré abriu a  porta.
- ... O que é que está a ler?
- Estou a ler a Madamme Bovary ...
- Ah, a Madamme Bovary!, disse eu ... Eu já li esse livro nove vezes.
- ... pela nona vez.
Dissemos os dois ao mesmo tempo. A porta abre-se de par em par e ele olhou para mim e disse:
- Oh! Do you want a drink?
Quer whiskie velho ou the bay whiskey? E sentou-se e esteve horas a falar comigo. Portanto, o Flaubert e a Madame Bovary ... eu acho que lhe fiz uma óptima entrevista.»
Filme/documentário de Nuno Artur Silva. De quem houvera de ser?
Resta acrescentar a adivinhável e inconsolada desolação em que CFA deixou o escritor britânico por não poder ficar ali a ouvi-la mais um punhado de horas. E ser justo: "O fascínio das histórias" está bem feito. Vale os 73 minutos.

Reentro na "Pluma caprichosa" de 23.Nov.2019 para apreciar como, a reboque do epicédio de José Mário Branco, CFA se gaba, num diluviano e onanístico despudor, de certo professor de Direito, não o nomeando [Marcelo Rebelo de Sousa?...], lhe ter dado um 15:
«[...] Outro professor, hoje democrata e justo, entregou provas com a frase, há aqui um 15. Pausa dramática. Um 15 era uma nota tão superior, tão acima dos padrões normais onde imperava o 12. Um valor superior estava reservado para os rebentos machos de uma dinastia académica ou política, porque a vocação classista e machista do regime era insuperável desde que os rebentos não fossem muito imbecis. Dar um 15, em 1973, era considerado um acto subversivo. Um professor que desse um 15 tinha perdido a cabeça. E o dito professor, acentuou. Há aqui um 15 e, pausa dramática, pertence a uma senhora! Uma mulher tinha conseguido um 15. O 15 era meu e soube-me à fúria que a introdução me causou no meu 1.º ano. Uma senhora. Nunca esqueci. [...]»
Ridiculamente patético.
//
Empertigada, megalómana, CFA não se compara a personagens que não pertençam, pelo menos, ao universo literário dum imortal. Gervásio Lobato, por exemplo? Jamais, credo, que desprestígio! 
«[...]
Aí eu disse ao Luís Delgado e ao Mário Bettencourt Resendes: “Isto não faz sentido nenhum. Para mim não pode ser assim. E, portanto, eu vou aproveitar…” — é como na peça do Shakespeare, quando já está a chover e alguém diz “aproveito esta aberta e vou-me embora”. [...]»
Momento de reconhecer que CFA tem-me dado a saber coisas que por outros dificilmente saberia. Por exemplo, na parte final da conversa com João Miguel Tavares, o nome de um político do especial agrado de José Sócrates
«[...] ele (José Sócrates) disse-me que o político europeu que admirava — não sei se isso terá sido em off, agora não me lembro, mas olha, se era off agora vai — era o Berlusconi. Ele achava o Berlusconi uma personagem interessante. O Berlusconi é um multimilionário, Sócrates não era. E eu acho que, nalgum ponto da sua carreira, este homem desejou ser um multimilionário. E apaixonou-se por essa vida, que não era a dele. E, sobretudo, não era a vida de um primeiro-ministro. [...]»
//
«Nada que não se prevesse»
Eixo do Mal, 06.Jun.2019
previsse, bolas!
«os emigrantes evidentemente que rejuvejenescem»
«caso não haja maiorias na próxima eleição, que não vão haver quase de certeza
Eixo do Mal, 21.Fev.2019
maiorias ... que não vai haver
«tragédia humanitária absolutamente confrangedora»
Eixo do Mal, 24.Dez.2017
tragédia humana
«Aqui em Portugal ninguém é verdadeiramente punido quando se tratam de crimes de alto nível.»
Eixo do Mal, 11.Set.2016
quando se trata de crimes
«A culpa do Pinochet foi não ter morto toda a gente que devia», glosando Bolsonaro
«Não se tenham morto uns aos outros»
«Tenho muita pena de que o Partido Socialista, por uma vez, tenha sido um partido retrógado neste sentido.»
… e a mim faz muita pena, e espécie, que uma jornalista, escritora, licenciada em Direito, diga retrógado ... e descriminações como a seguir se lerá.
«mamain» / «descriminações»
Expresso/E, 01.Fev.2014
maman / discriminações, foda-se!
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Reformado sem nada de socialmente proveitoso para fazer, acompanhei no Inverno/Primavera de 2015/2016 a promoção [TV, rádio, imprensa, redes, feiras e festas] de "Pai Nosso", romancezeco medíocre+ de CFA. Cagarim orgíaco de vaidade e bajulação raramente visto por cá
A apresentação solene, na Fundação José Saramago, em 03.Dez.2015 — estava a tribo toda, com excepção de um enfermo real e de alguns mortos, incluindo da Vinci, Kant e Einstein. Notei igualmente a ausência do Papa Francisco —, durou hora e meia. A autora falou, perdão, pregou, vez por outra ralhando, nos 23 minutos finais, a partir deste momento:
Boa noite a todos.
... Quero agradecer em primeiro lugar ao meu querido amigo José António Pinto Ribeiro, aqui presente, que me ofereceu o chá ... escrevi num sítio fechado, na companhia do meu cão, o "Johnny" ... um dia o José António apareceu-me num tugúrio onde eu escrevia na altura … a mansarda onde ia escrever o grande romance … um janeleco … cheirava a mofo, que me foi emprestado por outro amigo, que é o Nuno Artur Silva [João Quadros explica], que também está aqui presente. … E o Nuno perguntava "Então, estás a escrever?" ... e um dia apareceu o José António Pinto Ribeiro com uma chaleira, um bule de chá … o meu combustível … Vários anos depois, aqui está o livro.
Quero também agradecer ao António e à Anna Damásio… foram sempre ao longo destes anos uma enorme presença na minha vida … quente, inteligente e exigente ...
... Quero agradecer à Anabela [Anabela Mota Ribeiro, mulher de JAPR que me acolheu sempre em sua casa como se fosse a minha casa. Eu tive um desastre de automóvel ... muito duro, e foram novamente o José António e a Anabela que me acolheram e protegeram ... 
... Eu achei que sabia escrever, porque escrevi toda a minha vida … nunca escrevi ficção científica porque detesto o futuro, sou uma pessoa que vive no passado, sempre ordenei o meu mundo em função da escrita e nesse sentido tudo o que acontece à minha volta é sempre matéria de qualquer coisa que ou escrevi ou escreverei ou escrevo ou nunca chegarei a escrever. Mas se não chegar a escrever, para mim não é muito importante. Isso não é determinante para mim.
Ontem, por exemplo, na rua onde moro, uma pessoa lançou-se de um segundo ou terceiro andar sobre um carro que por acaso estava estacionado mesmo ao lado do meu. Podia ter-se lançado sobre o meu carro … Porque é que ele se atirou? Porque é que ele voou? Porque é que isto aconteceu? E é disto que eu me alimento ... Escrevo porque preciso de que as coisas façam sentido dentro da minha cabeça ... O rapaz que se atirou … Porquê? Ele estava sozinho? Ele era um doente mental? Ele era um perturbado? Foi empurrado? Foi um crime?...
... O que interessa é que nada acontece por acaso. Como dizia o Gabriel García Márquez, "Não há acasos, só há coincidências."*, e eu concordo. Só que essas coincidências são coincidências ontológicas. ... 
* «Ahí confirmé lo que dijo Freud: "En la vida no hay azar" o como dicen los abuelos de Güémez: "No hay casualidades... simplemente una sincronía con la vida".» - Aqui.
«“No hay casualidad sino destino. No se encuentra sino lo que se busca y se busca lo que existe en lo más profundo del corazón.” -  Ernesto Sabato.» - Aqui.
«Según el psiquiatra suizo Carl Jung esto no es casualidad, sino sincronicidad, uno de los aspectos más enigmáticos y sorprendentes de nuestro universo. No existe la casualidad, y lo que se nos presenta como azar surge de las fuentes más profundas. - Friedrich Schiller» - Aqui.
Do Gabriel García Márquez nem rasto.

Prosseguindo, disse, perdão, proclamou CFA:
... O jornalismo obriga-nos sempre a ser verdadeiros e factuais, e deontológicos e a não inventar. [Bem prega Frei Tomás...] ...
... A nossa melancolia pós-imperial — e já tive esta discussão com um grande escritor inglês [CFA não fala com escritores senão no mínimo grandes] — é uma melancolia até mais aguda, mais forte, mais profunda e mais ferida do que a melancolia pós-imperial inglesa. ...
... Sou contra o esquecimento, o esquecimento parece-me a pior das sortes. ...
... Nós somos mais grandiosos do que aquilo que pensamos [se CFA já é grandiosa como é, imagino o que ela não pensa de si. Muralha da China?] e somos menos grandiosos do que aquilo que dizemos num jogo de futebol. ...
... Ali [Médio Oriente], as pessoas têm memória, não têm obliteração, não se esquecem e fazem tudo por não esquecer. Tanto dum lado como doutro ... era preciso uma dose de esquecimento que fosse razoável para evitar o ódio entre eles ... o ódio entre nós e eles, entre eu e o outro. Como dizia o Rimbaud, "Je est un autre. Je est un autre et un autre c'est moi". *  ...
* Eis como CFA, não fazendo a menor ideia do propósito e do contexto em que o poeta Arthur Rimbaud, ia fazer 17 anos (!), formulou tal pensamento de si enquanto criador, tentou encharcar de brilho o sistema hidráulico da Casa dos Bicos e cegar de espanto o auditório com uma citação literária erudita forjando-lhe às três pancadas sentido conveniente ao que perorava. Dois apontamentos bastam:  
«Rimbaud (1854-1891), numa carta a Paul Demeny de 15 maio 1871, escreveu: je est un autre (eu é um outro), professando uma concepção original da criação artística: o poeta não pode controlar o texto que sua verve exprime... Disse ainda: J’assiste à l’éclosion de ma pensée: je la regarde, je l’écoute… (Eu testemunho a eclosão do meu pensamento, eu o observo, eu o escuto...)» - Aqui
«Rimbaud escreve a Demeny: Pois Eu é um outro. Se o cobre acorda clarim, não é por sua culpa. Isto me é evidente: eu assisto à eclosão do meu pensamento: eu a observo, eu a escuto: eu lanço uma flecha: a sinfonia faz seu movimento nas profundezas, ou salta sobre a cena.» - Aqui.
Que tem "Je est un autre" a ver com entre nós e eles, entre eu e o outro? Nada. CFA, dondoca culta. 

Continuou:
... Uma coisa é olhar, outra é ver. ... Olhar é fácil, ver é que é difícil, ver é extraordinariamente difícil ... Aquilo que eu tentei neste livro foi não apenas olhar ao passar, foi ver e depois a seguir [sic] perceber. 
Ver e olhar são ao contrário, doutora CFA, tudo nos diz que são ao contrário. Aposto em que perceberia melhor se olhasse. Exemplo básico que até CFA entenderá sem explicador:
Ver - Encontrou-me e disse «Há muito que não nos víamos!» ||  Olhar - Olhou para mim e comentou «Que tristeza é essa?». 

E concluiu em glória:
... nada acontece por acaso; tudo são coincidências. ...
... Queria dizer, para finalizar, que há pessoas que não estão aqui esta noite, que estão ausentes, que eu tenho muita pena mas tenho que invocar, dois grandes amigos que não estão aqui: a Maria de Jesus Barroso e o meu querido amigo Mário Soares que por razões de saúde não pode estar aqui; certamente estaria como esteve sempre comigo em todos os momentos e foi sempre uma figura"inspiradora" é uma palavra pequena. Não está o José Saramago. Não estão outros mortos e alguns dos mortos com quem me cruzei e alguns dos mortos que acabei por matar dentro do meu livro. Tenho pena de que esses mortos não estejam ... Se há uma coisa mais terrível do que a morte dos outros, é a nossa própria morte, como toda a gente sabe. ...
... Obrigada a todos. 
//
{Clara, Clarinha, tu andavas a pedi-las. Desculpa ainda não teres sido servida neste humilde estabelecimento, mas, haverás de reconhecer, não é fácil lidar contigo.
Primeiro problema: há um enorme abismo entre o que és (uma jornalista «que escreve bem») e o que gostarias de ser (um grande vulto da literatura). E tu sabes isso. A impiedosa Clara-cronista será sempre demasiado severa para com a virtual Clara-escritora. É esse o motivo pelo qual a retumbante novela que guardas há anos nas gavetas da tua imaginação jamais verá a luz do dia. É pena, porque com jeitinho talvez conseguisses escrever uma coisa parecida com o «Equador», para vender bem no Verão e levar para a praia. O teu drama é que querias um «Nostromo» ou uns bons «Karamazov» (2 volumes, tradução directa do bielorusso de Nina e Filipe Guerra, Lda.). Achas que, com o que já leste na vida, tens direito a não menos que isso. O teu talento é a tua tragédia. Com a fama que já tens, tudo o que escrevesses seria sempre «vocês têm o último da Clara Ferreira Alves? Não me lembro do nome». Resumindo: estavas três meses nos tops da Fnac e o resto dos teus dias na ignóbil poeira do esquecimento. Não é isso, em absoluto, o que almejavas. O teu sonho era escrever uma obra de génio numa mansarda tuberculosa de Dublin, vivendo do ar, cafés e cigarros, saindo directamente do anonimato para as páginas do The Western Canon. O problema é que já és demasiado famosa para isso. Tens, portanto, de ir convivendo com personalidades literárias como o Dr. Pedro Miguel Santana Lopes para ganhares o que a tua pulsão consumista reclama.
Segundo problema: a tua pluma é polifónica. Saltitas entre um número variado de registos, do género «colecção Anita» («Anita na Praia», «Anita, Grávida Adolescente», «Anita no Jardim Zoológico», «Anita Vai ao Circo», «Anita no Private Banking», «Anita e o Ouricinho-Cacheiro», «Anita e a Co-Incineração», «Anita no Ballet», «Anita e as Obrigações de Curto Prazo», «Anita Fuma a Primeira Ganza», «Anita na Montanha», «Anita Já Dá Para a Veia»)
[...]
Clara, Íntima dos Grandes Escritores [...]*
Clara, Repórter de Guerra [...]*
Clara, urbano-depressiva [...]*
Clara, cidadã do mundo [...]*
Clara, na intimidade [...]*
* Excertos ilustrativos de "Pluma caprichosa"
Clara-caprichosa, és tremendamente snob. Mas essa até te desculpamos. Todos sabemos que o snobismo é a forma de disfarçares a banalidade pequeno-burguesa do teu nome, de que te envergonhas. A tua petulante altivez esconde um drama profundo: tens um apelido compósito («Ferreira Alves») que parece marca de vinho branco para temperar a carne. Tara perdida.}
//
Etc.
Vale para CFA o que vale para outros plumitivos e falantes públicos que aqui zurzo, repetindo-me: há sempre o risco de crianças por perto.
Fora isso, CFA sabe muito, lê muito, viaja muito, escreve benzinho, tem vocabulário e jeito, aprendo com ela, e será decerto criatura bondosa.
Apre!
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segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Etimologia avançada

«GATO RESGATADO
Os Bombeiros Sapadores da Figueira da Foz resgataram ontem um gato que foi atropelado. O animal ficou ferido e foi entregue aos cuidados do veterinário municipal.»

Até ontem e a despeito dos que sustentam proveniência castelhana, a maioria dos lexicólogos, entre os quais o grande Antônio Houaiss, propendia para a origem controversa de «resgate».
Mas isso era até ontem.
A notícia do Correio da Manhã elucida, julgo que definitivamente, a formação latina da palavra:
res (coisa, assunto) + cattu (gato).
Está na cara. As coisas que uma pessoa aprende a ler os melhores jornais...

Entretanto, foi avistada uma lagartixa a escalar um penhasco ao sol.

domingo, 19 de janeiro de 2020

By Ace Chen

Não me intrometo no banzé zoante que por aí anda sobre que coisa seja arte, pois d'arte nada sei, só a sinto.
Mas não me vou sem uma isentíssima colherada*: isto, sim,** cheira-me a bom gosto. [emoji de riso, s.f.f.]
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* E mais outra, que ainda tenho espaço: a Electra 8 já cá canta. Vida de intelectual não pode ser só Correio da Manhã.

** Que pena os amaricanos não usarem acentos...

Ó Pedro Mexia, tento nessa língua...

ÚLTIMA  HORA
Pedro Mexia diz «items». [Como se dissesse «origems».]

«quais são os items dessa acusação que lhe é feita?»

«são aliás todos os items da minha ementa»
os itens

«O punk, nesse sentido, para mim é a epítome desse lado de energia» 
o epítome 

«sensação que basta ser verosímel — não é preciso ser verdadeira —, basta ser verosímel para ser bastante grave.»

«está aberto a qualquer solução possível e imaginária para continuar no poder»

«atenção, eu não sou daquelas pessoas que acha que»
daquelas pessoas que acham

«não faço parte das pessoas que diz "não aconteceu nada"»
das pessoas que dizem

«Uma das coisas que acontece, uma das coisas que acontece muito foi aquilo que o Germano disse.»
uma das coisas que acontecem

Pedro Mexia é dos portugueses que por aí escrevem e falam que mais admiro.
Mas, lá está*, há sempre o perigo de crianças por perto
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* Tique incontinente e relapso do comparsa Ricardo Araújo Pereira, por sinal ultracuidadoso no manejo da gramática.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2020

Coprolalíadas

Desde que, Primavera de 1981, li "Ler na retrete", de Henry Miller*, numa retrete de Campolide, em Lisboa, não mais deixei de ler nelas.
E o que tenho aprendido, meus amigos!

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«[...] Na minha opinião hoje lemos para nos livrarmos, primeiro, de nós próprios; segundo, para arranjarmos defesa contra perigos reais ou imaginários; terceiro, para nos mantermos a par dos outros ou impressioná-los, o que é o mesmo; quarto, para sabermos o que se passa no mundo; quinto, para nosso prazer, ou seja, estimular e elevar as nossas actividades, para nos enriquecermos. [...]»

quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

RTP 2020 - 16 cantigas

Liminarmente banidas
Rebellion - Não é cantiga portuguesa.
Abensonhado - Não é cantiga.
Dói-me o país - O Caracol até que não tem má voz, mas os 25 segundos de não-cantiga lá pelo meio estragam tudo.
Movimento - Não é cantiga.
Suficiente +
Cegueira - Comparem-se os primeiros 40 segundos com os primeiros 40 de "Happy together", de The Turtles, 1967*.  O mesmo Fá sustenido menor e tudo...

Bom - 
O dia de amanhã
Medo de sentir  - Elisa, a melhor voz.
Bom
Mais real que o amor  - Pese embora o contágio evidente de Albinoni ou talvez por isso.

A melhor cantiga
Passe-partout - O melhor arranjo.

Mandasse eu, poupava-se nos jurados e na electricidade, e era assim.
Tudo por ordem, aqui.
A vitória de Rebellion não me surpreenderá. Quem manda no metabolismo da traquitana é a contingência do senão.
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Amor

Tu.
Meu embarque.

Três retratos tipo-passe de Rui Rio

O de Salvador Malheiro, caudatário peralvilho de RR, na entrevista radiodifundida pela TSF e publicada no DN [tenho o DN por jornal oficioso do presidente do PSD eleito em 13.Jan.2018] de 11.Mar.2018, na qual trata todos os nomes pelo nome, excepto o do seu chefe a quem se refere invariável e reverenciosamente por «Dr. Rui Rio».

O do escritor Manuel Jorge Marmelo na revista Notícias Magazine de 18.Mar.2018: 
«[...] fiquei elucidado quanto ao carácter do indivíduo que tem sempre a boca cheia de ética.»

O do senhor que aplaude à esquerda de quem olha, na Convenção do Conselho Estratégico Nacional do PSD, em Santa Maria da Feira, 16.Fev.2019 .

Quem não o conhecer que o compre.
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«Quando não se tem grande estofo, procura-se fazer uma política de casos — compreende? —, de casos. E isso, se leva o adversário, neste caso sou eu, a responder caso a caso, onde é que cai o debate? Cai em baixo na lama, fica aqui muito rasteiro.»
Então não, doutor? Se a política não é de casos, de que é ela? É mesmo isso que se exige: que o presidente do PSD responda pelos casos. De que foge, afinal?
E estou a marimbar-me no estofo do Montenegro.

«Na corrida à liderança interna do PSD...»

Esperamos ansiosamente por notícias da liderança externa do PSD.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

55055

Curiosidade frívola, não mais.
A edição n.º 44044 saiu há 11 anos; 11 anos antes, a n.º 33033; etc. Em papel.
Só daqui a outros 11, se o defunto ressuscitasse, haveria de sair* a edição n.º 66066.
O Diário de Notícias morreu em Julho de 2018.**  Desde aí é semanário, por sinal muito bom.
Entretanto, para manter a correnteza dos números, vão forjando diariamente uma mentira incorpórea.
Ainda assim, não deixou de mexer comigo a primeira página da edição n.º 55055, de ontem.
DN online é outra coisa. 
Conforme entre outras ocasiões contei nesta, o Diário de Notícias é há 50 anos parte dos meus dias. Por isso me emociono e encanito. 
Tudo triste.
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* Hesito nestes tempos verbais.

** Sei da crise geral na imprensa, mas muito me sugere que a menstruação sincronizada de Daniel Proença de Carvalho-Fernanda Câncio-Ferreira Fernandes-Pedro Marques Lopes, que acarinham desde sempre Rui Rio na direcção do PSD*** [os indícios são copiosos; se pedirem, mostro. A Justiça, ai a Justiça!, o medonho e velhaco Ministério Público, a violação do segredo, a inversão do ónus, o direito premial..., esta gente parece atormentada. O ectoplasma de José Sócrates leva a sair daquela casa.****] e decerto o preferirão agora a Montenegro, ajudou a rejeição dos leitores e apressou o enterro do meu velho DN. 

*** «[...] O PSD estava sem mensagem de esperança e colado a um período que todos queremos esquecer. Rui Rio pode não gozar de um estado de graça no seu partido, mas tem condições para renovar a ligação do PSD aos portugueses e recuperar os eleitores que o abandonaram.
E mostrou uma qualidade que começa a ser rara na classe política: a coragem de dizer o que muitos pensam mas não se atrevem a dizer.
O seu discurso foi, nesse aspecto, inovador. É com coragem e determinação que se afirma uma liderança.»

**** «03.Dez.2019 - A solução para a crise do jornalismo é simples
É dar dinheiro a quem o faz – What else? No caso da imprensa escrita, face à actual oferta, jamais daria dinheiro à Cofina, à Impresa, à Sonae e quejandos, exemplos de pasquinagem que degradam e infectam o espaço público. Dou dinheiro pelo DN, sete euros e tal por mês, e assim continuarei a fazer enquanto o produto me continuar a respeitar como cidadão. É simples.
[...]»

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

O inefável e escorregadio Tolentino

«[...] Lá vi então José Tolentino Calaça de Mendonça a desfilar pela internet, vestes cardinalícias, sorriso de orelha a orelha, recebendo o beija-mãos dos seus patrícios, rodeado de padrecas e de autarcas todos impantes de importância, sob o olhar embevecido da mãe e perante a velha espinha dobrada do povo miúdo, ele todo mesuras, ares de santidade e gestos de sábio em câmara lenta. [...]»

«[...] um alto representante da Igreja que arrebata almas e corações de crentes, intelectuais e gente que se arrebata nas coisas da poesia e da espiritualidade. [...]» 

Com fala e ar seráficos característicos do clero católico que sabe tudo, e ensina, sobre amor e sexo,  pouco ou nada fornicando, o poeta, ensaísta, romancista, guionista, teólogo, biblista, conferencista, professor doutor e antigo vice-reitor da Universidade Católica, hoje cardeal, José Tolentino Mendonça é um dos cinco portugueses de que não consta, não se diz, não se ouve, não se vê, não se escreve o mais ínfimo defeito, a mais tímida reserva, o mais leve reparo. É um enaltecido e mui agraciado consenso nacional.*
Neste momento, não consigo lembrar-me dos nomes dos outros quatro.
Sigo-o e aprecio-lhe a lira vai para 20 anos.
Matricialmente forjado nas fundas e obscuras berças do vicariato madeirense retrógrado** [perdoe-me, leitor paciente, a saturação pleonástica], leu entretanto muito, frequentou e profissionalizou-se no sinédrio dos autores amados pelos crentes e não-crentes lisboetas aculturados na capela do Rato. Sem dúvida um homem sensível, esperto e espiritualmente vasto, artífice de escrita enfeitiçante, o padre Tolentino tornou-se cosmopolita e fez-se transversal, um intelectual de ampla notoriedade pública, mas sempre fujão, como o diabo da cruz, de qualquer concreta escolha política. Humanismo cristão? Como é particular amigo, lá de casa, de Assunção Cristas, André Ventura, Maria João Avillez, Laurinda Alves, Helena Sacadura Cabral..., se calhar é isso. Mas a gelatina lumbricóide é que não lhe sai do molde. 

* Tive de ir ao inferno, à Maria D'Aljubarrota, para encontrar um rumor desalinhado do uníssono bovino.
** «A celebração [graduação em bispo, Jerónimos, 28.Jul.2018] foi presidida pelo cardeal-patriarca de Lisboa, D. Manuel Clemente, e teve como bispos co-ordenantes o cardeal D. António Marto, bispo de Leiria-Fátima, e D. Teodoro de Faria, bispo emérito do Funchal.»

Tolentino não é propriamente fiável. Às vezes disparata alarvemente, como, por exemplo, no texto ensaístico que co-assinou com Alfredo Teixeira no Expresso de 06.Mai.2017, "Fátima, um estado de arte", em que se discorre sobre a relevância de Fátima na "Viagem a Portugal"***, de José Saramago, fazendo errónea e recorrentemente crer que o livro é de 1995 e contextualizando socialmente o fenómeno desde 1995. Ora, de 1995 é a 23.ª edição da obra, primeira sob chancela da Caminho, que li em 1981 — 14 anos antes! —, ano em que saiu a 1.ª edição - Círculo de Leitores.
...
Da Batalha eu fui a Fátima
Onde a fé vive bem mais

Só a fé poderá salvar Fátima., escreveu José Saramago [página E|30], sim, mas em 1981, não em 1995.
Reconhecendo pertinência na decepção que a feiura evidente do recinto causou em Saramago, os autores do ensaio — padre Tolentino e teólogo Teixeira, docente na universidade de que o primeiro era vice-reitor — tecem loas ao incremento arquitectónico e estético, operado de 1995 para cá [muita e boa arte, uma moderníssima e bela nova basílica, concordo]. Já quanto ao imenso, obsceno e insaciável comércio de bugiganga, promessas e esmolas, praticado ou patrocinado pelo santuário, nem um pio. O móbil da Católica é dinheiro, o móbil de Fátima é dinheiro e nisso, manda a prudência do suc€$$o, não se toca que pode espantar os fiéis. A Educação e a Fé são os melhores escudos do negócio.
Cabe, assim, pôr aqui frases inteiras da passagem de Saramago, o viajante, pela Cova da Iria, em 1981, negrito meu, de que Tolentino e Teixeira fugiram a sete pés:
«[...] O viajante, que é impenitente racionalista, mas que nesta viagem já muitas vezes se emocionou por causa de crenças que não partilha, gostaria de poder comover-se também aqui. Retira-se sem culpas. E vai protestando um pouco de indignação, um pouco de mágoa, um pouco de enfado diante do estendal de comércio das inúmeras lojinhas que aos milhões, vendem medalhas, rosários, crucifixos, miniaturas do santuário, reproduções mínimas e máximas da Virgem. O viajante é, no final das contas, um homem religiosíssimo: já em Assis o escandalizara o negócio sacro e frio que os frades agenciam por trás dos balcões. [...]»
De resto, Saramago ainda foi bondoso com a reitoria do santuário ao deixar no tinteiro a proliferação pantagruélica dos sorvedouros de esmolas, o mercado de promessas e o mastodôntico negócio da queima de cera.
E a coisa — ainda há três dias lá estive; relembro que o Plúvio é devoto de Fátima — não pára de inchar, inchar, inchar.
Conte o leitor as vezes que a palavra «euro» entra nesta notícia recente, com percentagens várias e muitos milhões, caucionada pela directora de comunicação do Santuário de Fátima, Carmo Rodeia.
Ora bem: zero, Ave Maria, cheia de graça...
Enfim, letra de José Tolentino Mendonça, música de outro Gil, João.
//
E que tal a gramática de Tolentino?
Tem dias. Aí vai, por amostra, um punhado de merdas colhidas desde 2013 na página do insigne e purpurado colunista do Expresso, "Que coisa são as nuvens". 

Uma alma caridosa explique a sua excelsa e doutorada eminência que áurea por aura é erro grosso:
«foram despojados da sua áurea»
«com a áurea acrescida trazida pelo uso»
«esta mulher, sem áurea de letrada»
«Quando progressivamente as estradas se foram colonizando pelo tráfico automóvel»
tráfego automóvel, foda-se!

«com os seus sofrimentos, os seus revezes»
revezes é feminino e nada tem a ver com os reveses a que Tolentino alude.

«Veja-se, por exemplo, o ênfase simbólico que tem sido dado»
a ênfase, raios!

«novos interfaces tecnológicos»

«Quanto muito, e por uma condescendência especial»
«Quanto muito tem crescido o voyeurismo que sobrevoa a existência alheia»
quando muito, se não se importa.

«As personagens do mundo homérico são, sem dúvida, melhor descritas.»

«Quem não sabe parar, não sabe viver»
«connosco mesmos e com os outros»
vírgula proibida / connosco e com os outros

«Jantava, lavava a louça e colocava-se a escrever
Abrenúncio!

«a morte iniciava a rondar-lhe os passos» 
Abstruso.

«Ao que parece, durante anos, o compositor John Cage sondou a possibilidade de elaborar uma obra completamente silenciosa, mas impedia-o duas coisas: [...] Contudo, encorajado pelas experiências que se realizavam já nas artes visuais, construiu a sua peça intitulada 4’33’’»
impediam-no duas coisas

«Saímos e regressamos de casa»
regressamos a casa

«À medida que fazemos a experiência deste lugar deixamos de saber se os longos trechos de caminho de floresta nos preparam para contemplar as obras artísticas ou se o encontro com estas inicia-nos, finalmente, num contacto verdadeiro com a natureza.»
ou se o encontro com estas nos inicia

«O mais provável é que tenham perecido a uma doença»
perecido de uma doença

«Aquilo que Durkheim chamava "as formas elementares" do fenómeno religioso podem encontrar-se, sem grandes contorcionismos simbólicos, no entusiasmo colectivo que o desporto-rei desperta.»
aquilo ... pode encontrar-se

«O pássaro domesticado vivia na gaiola e, o pássaro livre, na floresta […]
Meu amor voemos para o bosque»
Terá sido por esta tradução ou por esta, ambas brasileiras, que Tolentino se conduziu. Adaptou uma ou outra frase, como «Vem antes ter aqui comigo» ou «não podiam voar alinhando as suas asas», cumpliciando-se desleixadamente na pontuação desastrosa. Deixasse-se guiar por esta tradução, igualmente brasileira, e não se espalharia tanto. Ou então, o mais avisado, traduzisse ele.
Senão, veja-se a versão inglesa do próprio Rabindranath Tagore [07.Mai.1861-07.Ago.1941], Nobel da Literatura em 1913:
«[...]
The tame bird was in a cage, the free bird was in the forest.
They met when the time came, it was a decree of fate.
The free bird cries, "O my love, let us fly to wood."
[...]» 

Só mais uma, doutra monta. 
O hábito de o ler diz-me que Tolentino é artista na ocultação das gárgulas de que bebe.
«[…]
No pólo oposto, o poeta Rainer Maria Rilke ajuda-nos a pensar a ideia de aberto**** como projecto. E o aberto o que é? É a possibilidade de cada um viver em abertura fecunda ao real, resumida assim: "A nossa tarefa consiste em impregnar esta terra, provisória e perecível, tão profundamente em nosso espírito, com tanta paixão e paciência que a sua essência ressuscita em nós o invisível."
[…]»

**** «O termo “Aberto” foi criado por Rilke para exprimir essa abertura do ser para a vivência fecunda do real.»
- Nota de Alexandre Bonafim Felizardo, da USP (Universidade de São Paulo), no artigo "Dora Ferreira da Silva, leitora de Rainer Maria Rilke: aspectos intertextuais", publicado na revista "FronteiraZ"***** n.º 5, de Agosto de 2010, pp 156-165, isolado aqui. No mesmo artigo escreve ABF: 
«[…]
Esse trabalho transmuta as coisas, torna-as interiores a si mesmas e a nós, torna-as invisíveis. Conforme as palavras do próprio Rilke: “A nossa tarefa consiste em impregnar essa terra, provisória e perecível, tão profundamente em nosso espírito, com tanta paixão e paciência que a sua essência ressuscite em nós o invisível.” (Rilke apud Blanchot, 1987, p. 138). 
[…]»
***** Da PUC-SP [Pontifícia Universidade Católica de São Paulo]
Nota
Ao matreiro Tolentino, escondendo do leitor do Expresso que trasladou do brasileiro, escapou que em português europeu teria de ser «no nosso espírito».
E mesmo dando de barato que, no contexto da citação de Rilke, o conjuntivo «ressuscite em nós o invisível» do Felizardo faz mais sentido do que o indicativo do «ressuscita em nós o invisível» do Tolentino, ainda assim a ideia da ressurreição d' o invisível continuava a soar um tudo-nada aberrante. Como não sei alemão [«Unsere Aufgabe ist es, diese vorläufige, hinfällige Erde uns so tief, so leidend und leidenschaftlich einzuprägen, daß ihr Wesen in uns "unsichtbar" wieder aufersteht.» - Rainer Maria Rilke, 13.Nov.1925] e não tenho mais nada que fazer, guglei. E não é que no suplemento "Vida literária" do Diário de Lisboa de 06.Jul.1961 António Ramos Rosa, falando de Herberto Helder, citava a mesma passagem rilkeana, aqui, sim, com fraseado convincente?
«A nossa tarefa é impregnar esta terra provisória e perecível tão profundamente no nosso espírito, e com tanta paixão e paciência, que a sua essência ressuscite em nós invisível.»
Que lhe parece, senhor padre arcebispo cardeal, etc. e tal?