sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

"A vida dos estudantes"

«[…]

Da época em que a juventude teve uma grandiosa significação cultural e quis assumir a responsabilidade do devir histórico, com o entusiasmo político de quem se sentia um grupo messiânico, chamado a libertar a humanidade da opressão e da injustiça, passámos para a época em que ser jovem significa ausência de projecto, aceitação dos limites, repetição.
[…]
As famigeradas praxes não são mais do que uma forma de querer recuperar, pelo lado grotesco e alarve, uma coisa que já não existe nem tem condições para existir: a comunidade a que a vida dos estudantes dava forma, dotada de um grande significado cultural e intelectual. Elas exercem-se, portanto, no mais completo vazio, e por isso é que são violentas e patéticas.
[…]»

António Guerreiro, “A vida dos estudantes| Público/Ípsilon, 31.Jan.2014

José Pacheco Pereira

Notável.

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Parece, de ciência certa,

que o mundo um dia há-de acabar; mas pressinto que ele acabará muito antes disso.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Rui Rangel

«Isto não tem a haver com praxes; isto tem a haver com abusos.
[…]
Acho que é um pensamento retrógado […] É retrógado esse pensamento! […] Quando eu estava a dizer que era retrógado, [...]» 

Um benfiquista ilustre, juiz desembargador, professor universitário pró-praxe e comentador televisivo, a falar um português deste jaez só pode, evidentemente, envergonhar o país.
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domingo, 26 de janeiro de 2014

Música

Tinha uma paixão ardente pela sensível, uma paixão submissa pela dominante, uma paixão secreta pela sobretónica, uma paixão assolapada pela subdominante, uma paixão difusa pela sobredominante e uma paixão inexplicável pela mediante; mas a sua grande e verdadeira paixão era uma paixão p’la tónica.

[2] – Morreu em adiantado estado de composição,
dias depois de ter deixado pronta a sua última partitura. Aos 97 anos.
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* Meloteca é um excelente sítio, abundante, generoso e didáctico. Parabéns e obrigado, senhor professor António José Ferreira.

Discrepância prosódica

Abrindo o é, Luís Pedro Nunes diz feláchio, Inês Lopes Gonçalves diz felácio. A Inês sabe mais de latim do que o Luís.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

O “não natural” é que perturba tudo

«... so get fuckin’ used to it! Em tradução livre, este slogan, que surgiu nos Estados Unidos da América, nas manifestações dos homossexuais pelo reconhecimento, pode ser assim dito, em português: “Somos bichas, estamos aqui e habituem-se, caralho!”. O “estamos aqui” significava que esta exigência de reconhecimento pretendia também desarmar a forma de “assimilação” pelo lado do autoapagamento e da discrição, que a ordem heteronormativa tanto aprecia, pois nessa condição pode ser pródiga na “tolerância”, mantendo impecável a máquina social. A questão da adopção de crianças por parte de casais homossexuais parece ser a última etapa desse reconhecimento. Mas não é.
[…]
É, portanto, a questão do “não natural” que perturba tudo, na medida em que induz a percepção de que o considerado “natural” é uma grande impostura, necessária para a manutenção de uma determinada ordem simbólica.
[...]
Mais interessantes, do ponto de vista que temos vindo aqui a seguir, são os argumentos usados em nome de uma posição dita “liberal”: a co-adopção deve ser legalizada porque, de qualquer modo, a situação não natural já existe à partida e qualquer resolução que a venha quebrar é sempre uma violência para os que estão implicados nela; mas a adopção por casais homossexuais já é outra coisa: o Estado — dizem — está a interferir através da lei na criação de núcleos familiares, está a criar uma manigância que interfere numa ordem que, sendo social, é dada como mimetizando o que é “natural”.
[…]
até parece que o casamento — e tudo o que dele decorre — não é a instituição mais regulada e promovida pelo Estado. Estes mitólogos de feição liberal tudo fazem (uns por cálculo, outros por ingenuidade) para que não se perceba que o Estado exerce um biopoder, com a solicitude, a vigilância e o zelo controlador com que o pastor cuida do seu rebanho.
[…]
Por isso é que afirmação homossexual se faz tantas vezes através de uma teatralidade: muitos daqueles que se querem libertar da heterossexualidade pressuposta e evidente que os oprime precisam frequentemente de elevar a voz e gesticular de maneira provocatória.
[…]
esse Estado que quer governar apenas o suficiente para governar o menos possível precisou de desenvolver um conjunto de práticas e tecnologias que nos vigiam e comandam de todos os lados, 24 horas por dia.»
António Guerreiro, “We’re queer, we’re here" | Público/Ípsilon, 24.Jan.2014

quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

Acordo Ortográfico [86]

«[...]
Com estas questões do programa de português para o secundário cruza-se, mais uma vez e inevitavelmente, a do Acordo Ortográfico, objecto de um belo artigo de José Pacheco Pereira no Público de sábado*. Em que ortografia vão os nossos grandes autores ser servidos nas escolas? Serão implacavelmente desfigurados pela aplicação dessa coisa sem nome? Ou virá o Governo a tomar providências rápidas para, pelo menos em parte, remediar a situação?
A crítica definitiva do Acordo Ortográfico, nos planos científico, jurídico, político e sociocultural, está feita há muito, pelo que nem sequer vale a pena retomá-la. Mas torna-se necessária uma solução que, de resto, e como Pacheco Pereira também salienta, sairá tanto mais cara ao País quanto mais tarde ela for tomada. Os custos directos e indirectos serão muito altos, mas arriscam-se a tornar-se astronómicos se se continuar a perder tempo. Trata-se de uma questão também política que, pela sua dimensão internacional, requer um particular tacto no seu tratamento e cuja solução, segundo creio, poderia ser encontrada em três planos.
Em primeiro lugar, o Governo poderia negociar com os editores de livro escolar, que não são assim tantos, o abandono do esquema actual de aplicação do Acordo nas edições escolares, tendo em conta o tempo de validade dos livros e manuais existentes e o seu ritmo de substituição.
Entretanto, o Governo suspenderia a aplicação do Acordo Ortográfico decretada por uma Resolução do Conselho de Ministros de ultrajante memória, determinando que, na medida do possível, se voltasse já ao sistema anterior (afinal o ainda vigente, quer se queira quer não...).
Em terceiro lugar, no plano internacional, seriam desencadeadas as medidas necessárias a uma revisão imediata do Acordo Ortográfico pelos oito países de língua portuguesa (incluindo portanto Timor).
[...]»
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segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Política e futebol

Parem de me perguntar se sei quem é aquela criatura tão agradável.
A Humanidade ainda não está irremediavelmente perdida, isso sei.
O meu olhar selectivo mal deu pelo Senhor Presidente.
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Actualizado, com legendas reais, em 21.Jan.2014

sábado, 18 de janeiro de 2014

Disseram-me que

o Bernardino Soares estava na SIC Notícias. Vai-se a ver, estava na minha cozinha. Por cima do frigorífico.

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

- Pai,

o Justin Timberlake vem cá!
- Sim!? Temos de arrumar a sala e os tarecos da varanda; não quero vergonhas.

Muito obrigado, António Araújo.

"A cultura de direita em Portugal"
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Dos anos '80 do século XX a 2013 [jornais, revistas, televisão, blogosfera...]. Grande trabalho, grande fôlego.
Fascínio e algum asco; dinheiro, inteligência, humor; pedigree, comadres e compadrios.
Mas como quem sai aos seus não é de Genebra, salvo talvez os descendentes de genebrinos, é de ter presente que o doutor António Araújo, operário prodigioso que admiro, assessora um cavernícola tacanho e videirinho do eixo Boliqueime-Belém, nisso podendo indiciar talento degenerado, no mínimo mal empregue.
Quem disse que a vida é uma aventura grotesca do protoplasma? Enfim, tenho a certeza de que foi Jean Rostand mas não estou certo, nem me sobra agora tempo para confirmar, de que o tenha dito exactamente assim.*
Estou a pensar em vender pela melhor oferta as 32 edições [Out.1990 Mai.1993] da K, que guardo na arrecadação, não vão os instruídos peixinhos-de-prata, que já as devoraram todas, começar a devorá-las de vez. Há-de dar para umas valentes garrafas de tinto.

Cá está
 «[...]
En ce minuscule coin d'univers sera annulée pour jamais l'aventure falote du protoplasme... Aventure qui déjà, peut-être, s'est achevée sur d'autres mondes... Aventure qui, en d'autres mondes peut-être, se renouvellera... Et partout soutenue par les mêmes illusions, créatrice des mêmes tourments, partout aussi absurde, aussi vaine, aussi nécessairement promise dès le principe à l'échec final et à la ténèbre infinie...
[...]»

Homens, mulheres, judeus, gays… – Entredomínios na ordem desnaturada das coisas?

«[…]

Os uxoricidas ou se entregam à polícia ou se suicidam. Aquilo de que não há notícia é que se tenham suicidado ou entregado à polícia preventivamente, para não cometerem o homicídio. Em comparação com a violência política, racial e entre povos e nações, a violência dos homens sobre as mulheres fornece matéria para o livro negro mais volumoso da história universal. A lógica social da “dominação masculina” (para utilizarmos o título de um livro de Bourdieu cuja tradução portuguesa foi publicada pela Relógio d’Água) deixou os seus traços — e de que maneira! — na linguagem: a ética da virilidade refere-se ao vir, ao virtus.
[…]
As estatísticas mostram que as mulheres entraram em força, no último século, nos lugares que antes eram dominados pelos homens; e que a divisão sexual do trabalho se alterou radicalmente. Mas o que as estatísticas não mostram é que a hierarquia se vai reconstruindo, como as relações de dominação se restabelecem, de outra maneira, no interior dos territórios que pareciam ter-se libertado delas. É o que acontece quase sempre nos meios exclusivos dos gays: reproduzem no seu território princípios de discriminação que têm como matriz a violência heterossexual.
[…]
Para Weininger Otto Weininger (1880-1903) -, há uma equivalência entre a Mulher e o Judeu: ambos são privados de personalidade, privados de um Eu, falhos de grandeza e de valor próprio. Daí o axioma weiningeriano: “A mulher mais elevada está infinitamente abaixo do homem mais ínfimo”. Mulheres e judeus são, do ponto de vista de Weininger, responsáveis pelo declínio do Ocidente. Weininger era judeu (convertido ao protestantismo) e homossexual.»

Toda a piniculagem

Álbum actualizado.
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Dois indiscipinilados. Havia de ser na Coreia do Norte...

quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

Dantes é que era

«A notícia menos fresquinha da semana foi a de que a humanidade já sofria de problemas dentários há 15 mil anos. O estudo de uma universidade britânica apurou que os caçadores-recolectores do Paleolítico tinham cáries, abcessos e mau hálito, sobretudo devido ao consumo de nozes e frutos silvestres e à escassez de odontologistas competentes. Se isto era mau para os sujeitos de então, massacrados por dores e pela impossibilidade de sorrir sem afugentar uma manada de bois, é terrível para os académicos da actualidade, até agora convencidos de que as doenças dos dentes só haviam chegado com a agricultura, a sedentarização e as guloseimas da Ferrero.
Aliás, enquanto abala uma convicção da ciência, a descoberta, e o espanto associado à descoberta, confirma uma suspeita do senso comum: há em muita gente a tendência para se achar que antigamente é que se vivia bem. Não importa se o "antigamente" em causa é a pré-história, a Idade Média, a Era Revolucionária ou 1935, nem se a esperança de vida não ia além dos 30 anos, de resto passados em inomináveis agonias. O facto é que, numa adaptação livre das patranhas do "bom selvagem", estudiosos e leigos exibem uma propensão para mitificar o passado em detrimento, perdoem a redundância, do presente. Dantes, quando e onde quer que fosse, a espécie levava uma existência equilibrada, mesmo que os molares se esfarelassem na adolescência, as infecções devorassem membros inteiros e a fome consumisse sociedades sem deixar rasto. O fundamental é que estávamos em harmonia com a natureza. E hoje não estamos.
Hoje, no Ocidente e não apenas no Ocidente, beneficiamos de habitação, alimentação, saúde e conforto geral a uma escala que os nossos antepassados, entretidos a enfrentar o escorbuto e as consequências da procriação consanguínea, não conseguiam sonhar. Ainda assim, não falta quem, sentado numa sala quentinha a bebericar um latte da Starbucks, desabafe no MacBook as saudades da época feliz em que se trocavam mulheres por cabritos e o apogeu da tecnologia consistia no método de cozedura e defumação utilizado para encolher as cabeças dos inimigos. Paira, até em certa "inteligência", uma peculiar culpa pela forma como o Homem se libertou do primitivismo em prol do bem-estar, o exacto bem-estar que permite angústias do género. Com frequência, o progresso faz-se contra os progressistas, incluindo os que usam Colgate.»
Alberto Gonçalves, "Bons tempos"  |  revista Sábado, 16.Jan.2014

Rogério Casanova

 “Pastoral Portuguesa

- ‘Astrologia criminal’ – acerca de Zodiac, filme de David Fincher. 

«[…] O tempo passa (e poucos filmes que conheço representam melhor a passagem do tempo).

[…]

O que acontece em Zodiac é que a investigação deixa de ser judicial e profissional, e passa a ser histórica e amadora. E, ao sair da arena do profissionalismo e da justiça, tem de abdicar de uma conclusão definitiva. Cada um dos investigadores originais tinha uma intuição, um suspeito preferido. Mas a justiça criminal tem de submeter-se a um cálculo binário (culpado ou inocente) e não probabilístico. Já a investigação histórica, quanto mais distante do objecto de estudo, mais sujeita está a chegar a uma conclusão probabilística: é provável que as coisas se tenham passado assim; tanto quanto sabemos, a história foi esta.

A obsessão, tal como a justiça, não lida bem com probabilidades; também ela quer os seus 100% (os pelo menos os 99,99%). Mas, ao contrário desta, tem a flexibilidade para falsificar as suas certezas.

[…]»

- ‘Consultório literário

«[…] Que compêndio de ‘estórias’, na sua opinião, é o mais indicado para oferecer a um leitor juvenil: As Mil e Uma Noites, ou o Decameron, de Boccaccio?» - Rute

«Cara Rute,

[…]

Infelizmene não estou em condições de oferecer uma opinião abalizada sobre As Mil e Uma Noites, que nunca li na íntegra.

[…]

Já sobre o Decameron, só tenho bem a dizer, merecendo especial destaque o conto do frade Rustico, que educa uma jovem campesina nos caminhos do Bem, ensinando-lhe um ritual religioso que consiste em meter o Diabo no inferno várias vezes por dia, até este perder o seu maligno vigor.»


Maus silêncios, entre linhas

[…] A arte do diálogo ficcional é talvez uma das mais difíceis de dominar: um dos poucos pontos consensuais entre manuais de escrita criativa e entrevistas de escritores. Os critérios pelos quais a qualidade de um diálogo é avaliada são notoriamente paradoxais.

[…]

Embora os maus livros (como as famílias infelizes de Tolstói) sejam maus de muitas maneiras diversas, poucas coisas são mais omnipresentes na pior ficção contemporânea do que certas quebras de diálogo com indicadores gestuais ou fisionómicos. Abra-se qualquer página de Stephenie Meyer, E. L. James, Dan Brown ou José Rodrigues dos Santos e encontra-se o mesmo universo de personagens repetindo os mesmos exercícios de mímica: pessoas que franzem o sobrolho – e depois falam; pessoas que erguem uma sobrancelha – e depois perguntam; pessoas que inclinam a cabeça – e depois respondem; pessoas que suspiram; pessoas que pestanejam; pessoas que mordiscam os lábios; pessoas que desviam o olhar; pessoas que arregalam os olhos de espanto; pessoas que compõem um esgar significativo.

[…]

Toda a ficção, mesmo que não pretenda ser arte, deve pelo menos saber que é artifício – um artifício que, para ser eficaz, tem de fingir não o ser. E para se fingir, tem de se saber o que se pretende fazer, e o que se pretende evitar.

[…]

nos bons livros, um personagem raramente faz outra coisa senão dizer; nos maus livros, o mesmo desgraçado que franze o sobrolho, e morde o lábio, e arregala os olhos de espanto, é também forçado, num circuito de manutenção através do dicionário de sinónimos, a afirmar, declarar, comentar, salientar, exortar, indagar, replicar, retorquir, atalhar e exclamar. Nos casos mais graves, a infracção à austeridade é agravada adverbialmente. Quem declara, declara calmamente; quem comenta, comenta ponderadamente; quem exclama, exclama excitadamente. E não é pouco usual quem exclame excitadamente enquanto arregala os olhos de espanto.* 

[…]

Dickens, que nesse monumento profético que é Our Mutual Friend, publicado quatro décadas antes da alvorada modernista, já parecia pressentir a necessidade de regeneração. No capítulo do banquete em casa dos Veneering, o meu candidato pessoal ao título de melhor diálogo na história da literatura, encontramos pessoas que ecoam frases unidas por chavetas; alguém que – entre linhas – bate com o leque nos nós dos dedos da sua mão esquerda (que era particularmente rica em nós dos dedos); e este belo recado técnico para as futuras gerações de escritores criativos:

Mortimer ergue as suas lânguidas pálpebras e abre ligeiramente os lábios. Mas um vago sorriso, exprimindo um sentimento de “Que raio de ideia!”, passa-lhe pelo rosto, e então baixa as suas lânguidas pálpebras e fecha ligeiramente os olhos.»

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O que o grande Casanova me faz rir, Nossa – dele e minha – Senhora!

Acordo Ortográfico [85]

 José Mário Costa, a favor, “O Acordo Ortográfico”, carta ao Expresso, 11.Jan.2014

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Perder-se dos pais e vice-versa. Dor, cinza.

«Encenador de ópera, Michel Rostain enfrentou, em Outubro de 2003, o mais inconcebível dos sofrimentos: a morte do filho único, Lion. Aos 21 anos, o jovem sucumbiu em poucas horas a uma meningite fulminante. O filhoé o relato detalhado de como um casal atravessou o caos da dor e o longo processo do luto, encontrando no fim do caminho motivos para dar sentido à vida e para gritar, como o pai em lágrimas à saída da morgue, “Viva o sol! Viva o sol, apesar de tudo!” […] O narrador não é o pai destroçado; é antes o filho, o morto [as cinzas foram enterradas no flanco do Eyjafjallajökull] uma espécie de fantasma que o texto inventa e reclama.

[…]

Em certos dias, os meus pais inspiram fundo as minúsculas partículas de cinza  que descem do Grande Norte até ao sul da Europa, como se elas viessem de propósito carregadas de mim.*»

José Mário Silva, “Sobreviver ao luto| Expresso/Atual, 11.Jan.2014

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* Dizem que pneumoultramicroscopicossilicovulcanoconiose é uma palavra fictícia. Nunca fiando, recomenda-se moderação nas inalações. Há tosses que matam.

PS - Sorrir no vulcão da dor é sabedoria rara a que não raro aspiro. Ignorante e frágil, o mais que consigo é quase sempre chorar. E tossir.

Daniel Jonas

«Esta entrevista nasceu da forte interpelação lançada pelo último livro de Daniel Jonas (Porto, 1973), Passageiro Frequente (Língua Morta). Não é uma surpresa para quem já tinha lido Os Fantasmas Inquilinos e Sonótono (publicados pela Cotovia, em 2005 e 2007, respectivamente), mas agora tornou-se evidente que estamos perante um dos autores mais fortes da poesia portuguesa actual. Há momentos neste livro em que o leitor acede a regiões bem altas, excepcionais (leiam-se, por exemplo, os poemas Casas, Imitação de vida e Paredes de vidro). A poesia de Daniel Jonas atravessa tempos diversos: o clássico, o romântico, o moderno, numa apoteose de rastos e linhagens que comparecem subtilmente. Nela encontramos, no mais alto grau, a ideia da linguagem poética como concentração e densidade. Ela é hábil nos jogos retóricos e de palavras, mas nunca deixa que isso se torne um exercício fútil e gratuito. De igual modo, a sua forte dimensão conceptual (de poesia pensante e auto-reflexiva) não elimina de modo nenhum o lado permeável às grandes tonalidades afectivas, por vezes até num grau exasperado, de poeta “decadente”, impregnado de consciência do fim. Esta entrevista resulta de uma troca de e-mails. O método não foi decidido pelo facto de entrevistado e entrevistador estarem distantes (Daniel Jonas vive no Porto), já que se tratava de uma distância fácil de transpor. A entrevista por escrito correspondeu antes à vontade de entrar num “jogo” diferente daquele que é próprio das conversas gravadas.»

 

Daniel Jonas:

«[…]
O que noto é que, sendo a minha poesia pouco amiga do leitor, pouco dada a grandes ajuntamentos fruitivos, é também geradora de uma certa estupefacção, uma certa curiosidade, interpelando um gosto vago, sem uma classificação particular.
[…]
Penso que se alguma coisa define o que faço é uma certa heresia em que tudo é convidado a entrar. E creio que alguma da minha poesia é razoavelmente imediata, instantaneamente refrescante.
[…]
Os leitores de poesia são, não poucas vezes, leitores rancorosos, se não reaccionários, que alienam preventivamente aqueles por quem julgam poderem vir a ser alienados. Mas em todo o caso a poesia não tem sentido. Não é que não faça sentido. E é, não raramente, uma descarga purulenta de matéria residual de espíritos nervosos, obsessivos e algo abstractos.
[…]
A poesia é uma forma de nos estamparmos de mota na segurança do lar.
[…]
Há também o outro lado, em que me induzo um estado inicialmente postiço de sofrimento de modo a poder abrir um canal que faculte a erupção criativa. Há poetas cuja alucinação chega ao ponto de imaginarem um desastre pessoal preventivo de forma a experimentarem um dado estado melancólico onde incubam a verve que procuram. Nesse aspecto tudo é cómico e devasso. Certamente me incluo neste grupo.
[…]
Os poetas são, aliás, seres proverbialmente estranhos ao seu mundo, entes deslocalizados cuja sensibilidade se manifesta na sua linguagem, que é sempre expressão do seu desacordo com o século. Diria, aliás, que isso é um definidor de poesia, esse linguajar estranho ao nosso mundo. O poeta é marcado por um sinete em brasa, por vezes encomiasticamente, por vezes depreciativamente. Essa marca aponta aquele gado como pertencendo a outras pastagens. As pastagens são linguísticas. Quando se diz de alguém que “é um poeta” ou que teve uma saída à “poeta”, fala-se de linguagem e do efeito de frases e do que as frases podem fazer por nós e pelo nosso conceito de mundo, ou seja, coisas que a linguagem quotidiana não é capaz de fazer. Mas não tenho a certeza de que o tempo da minha poesia seja o meu. Por vezes, pareço habitar numa região lógica pouco compatível com aquilo que faço nas regiões das musas. Que regiões são essas, a que tempo pertencem, di-lo-á o carbono 14 exegético de quem me lê.»
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Respondendo como a minha filha mais nova sempre que quer muito uma coisa quando lhe perguntam se a quer,
- Pode ser.
Se calhar, também é.

Abuso do ‘Eu, zé biodegradável’ na TVergonha

«Em momentos excepcionalmente favoráveis ao apelo à dramatização e ao olhar que se satisfaz de maneira ambígua e cretina na sua própria emoção, as televisões mostram a sua face mais abjecta: é quando tudo fazem para induzir as ditaduras do coração, porque esse é o seu alimento preferido e aquele que lhes permite exibir, na mais larga escala, o seu poder. Elas conseguem transformar um sentimento de luto num objecto de repulsa que nos faz desviar o olhar, não por piedade, mas porque uma violência enorme é exercida sobre nós: a violência do despudor. A violência é diária (e tanto maior quanto já não basta evitarmos o ecrã para nos subtrairmos aos seus efeitos) mas tem evidentemente os seus picos. Pela morte de Eusébio, as televisões subiram a um desses picos já conhecidos e mostraram, mais uma vez, a violência que são capazes de exercer sobre a nossa vergonha.

[…]

Sentimos vergonha por ouvir os relatos, os comentários e as reportagens dos jornalistas porque há algo em nós que se sente ameaçado, desnudado, com tais palavras e atitudes. Sentimos vergonha quando um jornalista se aproxima de alguém que exibe ostensivamente o seu luto e a sua emoção e lhe pergunta: “O que é que sente neste momento?”

[…]

sentimos vergonha tanto pelo jornalista que faz a pergunta como pela sua vítima, que se apresta a responder sem o insultar.

[…]

Mas se não é plausível que sejam todos estúpidos e falhos de vergonha, então temos de admitir que estão a exercer uma violência enorme sobre si próprios para garantir o emprego. A que ordens obedecem, então? Quem lhes retira toda a autonomia e os coloca a fazer algo relativamente ao qual eles deviam poder declarar-se objectores de consciência?

[…]»

António Guerreiro, “Vergonha e auto-censura| Público/Ípsilon, 10.Jan.2014

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Justin Bieber, mercadoria

«[…]
O seu caso é interessante precisamente neste aspecto: ele mostra na perfeição aquilo a que alguém já chamou “sociedade do espectral”. Um corpo de star, a sua produção mágica e maquinal, é a superfície sensível do aparecimento de um espectro, isto é, o corpo de uma star é uma máquina de produzir a superfície sensível de um espectro. O glamour só pode ser espectral e fantasmático. E o que é que esta “sociedade do espectral” tem a ver com o que foi designado como sociedade do espectáculo? Um texto de Artaud, onde ele diz que se encontra perante “espectros que querem comandar o real”, talvez nos ajude a responder: a sociedade do espectáculo tem a sua soberania no poder de controlar os corpos através de espectros, de marionetas, de stars. O processo tem um correspondente na ideia, desenvolvida pela primeira vez por Marx, de que a mercadoria é dotada de uma característica a que ele chamou “fetichismo”. E dá o exemplo de uma mesa: “A mesa é um objecto de madeira, sensível, comum. Mas quando surge como mercadoria transforma-se num objecto que é ao mesmo tempo sensível e supra-sensível.” Em suma: ganha um valor de troca que eclipsa o valor de uso, ganha uma voz que esconde a sua natureza material. Assim entendida, a mercadoria oferece-se como uma forma integrada no sistema simbólico da sociedade que a produziu. E é por isso que os objectos são portadores de significações sociais, trazem consigo, nos seus mínimos detalhes, uma hierarquia cultural e social. A lógica da mercadoria, que se estendeu, com o seu poder expropriador, a todos os domínios da vida social e até à linguagem, representa um grande espectáculo a que todos nós — e não apenas o Justin Bieber — estamos submetidos. Com os novos sistemas de controlo informático, o olhar do outro ganhou agora o alcance de um panóptico de escala planetária.»

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Acentuado

arrefècimênto nóctúrno.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

Bom ano, Ana.