“Pastoral Portuguesa”
«[…] O tempo passa (e
poucos filmes que conheço representam melhor a passagem do tempo).
[…]
O que acontece em Zodiac é
que a investigação deixa de ser judicial e profissional, e passa a ser
histórica e amadora. E, ao sair da arena do profissionalismo e da justiça, tem
de abdicar de uma conclusão definitiva. Cada um dos investigadores originais
tinha uma intuição, um suspeito preferido. Mas a justiça criminal tem de
submeter-se a um cálculo binário (culpado ou inocente) e não probabilístico. Já
a investigação histórica, quanto mais distante do objecto de estudo, mais
sujeita está a chegar a uma conclusão probabilística: é provável que as coisas
se tenham passado assim; tanto quanto sabemos, a história foi esta.
A obsessão, tal como a justiça, não lida bem com probabilidades; também
ela quer os seus 100% (os pelo menos os 99,99%). Mas, ao contrário desta, tem a
flexibilidade para falsificar as suas certezas.
[…]»
- ‘Consultório literário’
«[…] Que compêndio de ‘estórias’, na sua opinião, é o mais indicado para
oferecer a um leitor juvenil: As Mil e Uma Noites, ou o Decameron, de Boccaccio?»
- Rute
«Cara Rute,
[…]
Infelizmene não estou em condições de oferecer uma opinião abalizada
sobre As Mil e Uma Noites, que nunca
li na íntegra.
[…]
Já sobre o Decameron, só
tenho bem a dizer, merecendo especial destaque o conto do frade Rustico, que
educa uma jovem campesina nos caminhos do Bem, ensinando-lhe um ritual religioso
que consiste em meter o Diabo no inferno várias
vezes por dia, até este perder o seu maligno vigor.»
“Maus
silêncios, entre linhas”
[…] A arte do diálogo
ficcional é talvez uma das mais difíceis de dominar: um dos poucos pontos
consensuais entre manuais de escrita criativa e entrevistas de escritores. Os
critérios pelos quais a qualidade de um diálogo é avaliada são notoriamente
paradoxais.
[…]
Embora os maus livros (como as famílias infelizes de Tolstói) sejam
maus de muitas maneiras diversas, poucas coisas são mais omnipresentes na pior
ficção contemporânea do que certas quebras de diálogo com indicadores gestuais
ou fisionómicos. Abra-se qualquer página de Stephenie Meyer, E. L. James, Dan
Brown ou José Rodrigues dos Santos e encontra-se o mesmo universo de
personagens repetindo os mesmos exercícios de mímica: pessoas que franzem o sobrolho – e depois falam;
pessoas que erguem uma sobrancelha –
e depois perguntam; pessoas que inclinam
a cabeça – e depois respondem; pessoas que suspiram; pessoas que pestanejam;
pessoas que mordiscam os lábios;
pessoas que desviam o olhar; pessoas
que arregalam os olhos de espanto;
pessoas que compõem um esgar
significativo.
[…]
Toda a ficção, mesmo que não pretenda ser arte, deve pelo menos saber que é
artifício – um artifício que, para
ser eficaz, tem de fingir não o ser. E para se fingir, tem de se saber o que se
pretende fazer, e o que se pretende evitar.
[…]
nos bons livros, um personagem raramente faz outra coisa senão dizer;
nos maus livros, o mesmo desgraçado que franze o sobrolho, e morde o lábio, e
arregala os olhos de espanto, é também forçado, num circuito de manutenção através
do dicionário de sinónimos, a afirmar, declarar, comentar, salientar, exortar,
indagar, replicar, retorquir, atalhar e exclamar. Nos casos mais graves, a
infracção à austeridade é agravada adverbialmente. Quem declara, declara calmamente; quem comenta, comenta ponderadamente; quem exclama, exclama excitadamente. E não é pouco usual quem
exclame excitadamente enquanto arregala os olhos de espanto.*
[…]
Dickens, que nesse monumento profético que é Our Mutual Friend, publicado quatro décadas antes da alvorada
modernista, já parecia pressentir a necessidade de regeneração. No capítulo do
banquete em casa dos Veneering, o meu candidato pessoal ao título de melhor
diálogo na história da literatura, encontramos pessoas que ecoam frases unidas
por chavetas; alguém que – entre linhas – bate com o leque nos nós dos dedos da
sua mão esquerda (que era particularmente
rica em nós dos dedos); e este belo recado técnico para as futuras gerações
de escritores criativos:
Mortimer ergue as suas
lânguidas pálpebras e abre ligeiramente os lábios. Mas um vago sorriso, exprimindo
um sentimento de “Que raio de ideia!”, passa-lhe pelo rosto, e então baixa as
suas lânguidas pálpebras e fecha ligeiramente os olhos.»
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* O que o grande Casanova me faz rir, Nossa – dele e minha
– Senhora!