«Em
momentos excepcionalmente favoráveis ao apelo à dramatização e ao olhar que se satisfaz
de maneira ambígua e cretina na sua própria emoção, as televisões mostram a sua
face mais abjecta: é quando tudo fazem para induzir as ditaduras do coração,
porque esse é o seu alimento preferido e aquele que lhes permite exibir, na
mais larga escala, o seu poder. Elas conseguem transformar um sentimento de
luto num objecto de repulsa que nos faz desviar o olhar, não por piedade, mas
porque uma violência enorme é exercida sobre nós: a violência do despudor. A violência
é diária (e tanto maior quanto já não basta evitarmos o ecrã para nos
subtrairmos aos seus efeitos)
mas tem evidentemente os seus picos. Pela morte de Eusébio, as televisões
subiram a um desses picos já conhecidos e mostraram, mais uma vez, a violência
que são capazes de exercer sobre a nossa vergonha.
[…]
Sentimos
vergonha por ouvir os relatos, os comentários e as reportagens dos jornalistas
porque há algo em nós que se sente ameaçado, desnudado, com tais palavras e
atitudes. Sentimos vergonha quando um jornalista se aproxima de alguém que
exibe ostensivamente o seu luto e a sua emoção e lhe pergunta: “O que é que sente
neste momento?”
[…]
sentimos vergonha
tanto pelo jornalista que faz a pergunta como pela sua vítima, que se apresta a
responder sem o insultar.
[…]
Mas se não é
plausível que sejam todos estúpidos e falhos de vergonha, então temos de admitir
que estão a exercer uma violência enorme sobre si próprios para garantir o
emprego. A que ordens obedecem, então? Quem lhes retira toda a autonomia e os
coloca a fazer algo relativamente ao qual eles deviam poder declarar-se
objectores de consciência?