quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Abuso do ‘Eu, zé biodegradável’ na TVergonha

«Em momentos excepcionalmente favoráveis ao apelo à dramatização e ao olhar que se satisfaz de maneira ambígua e cretina na sua própria emoção, as televisões mostram a sua face mais abjecta: é quando tudo fazem para induzir as ditaduras do coração, porque esse é o seu alimento preferido e aquele que lhes permite exibir, na mais larga escala, o seu poder. Elas conseguem transformar um sentimento de luto num objecto de repulsa que nos faz desviar o olhar, não por piedade, mas porque uma violência enorme é exercida sobre nós: a violência do despudor. A violência é diária (e tanto maior quanto já não basta evitarmos o ecrã para nos subtrairmos aos seus efeitos) mas tem evidentemente os seus picos. Pela morte de Eusébio, as televisões subiram a um desses picos já conhecidos e mostraram, mais uma vez, a violência que são capazes de exercer sobre a nossa vergonha.

[…]

Sentimos vergonha por ouvir os relatos, os comentários e as reportagens dos jornalistas porque há algo em nós que se sente ameaçado, desnudado, com tais palavras e atitudes. Sentimos vergonha quando um jornalista se aproxima de alguém que exibe ostensivamente o seu luto e a sua emoção e lhe pergunta: “O que é que sente neste momento?”

[…]

sentimos vergonha tanto pelo jornalista que faz a pergunta como pela sua vítima, que se apresta a responder sem o insultar.

[…]

Mas se não é plausível que sejam todos estúpidos e falhos de vergonha, então temos de admitir que estão a exercer uma violência enorme sobre si próprios para garantir o emprego. A que ordens obedecem, então? Quem lhes retira toda a autonomia e os coloca a fazer algo relativamente ao qual eles deviam poder declarar-se objectores de consciência?

[…]»

António Guerreiro, “Vergonha e auto-censura| Público/Ípsilon, 10.Jan.2014