«A notícia menos fresquinha da semana foi a de que a humanidade já sofria de problemas dentários há 15 mil anos. O estudo de uma universidade britânica apurou que os caçadores-recolectores do Paleolítico tinham cáries, abcessos e mau hálito, sobretudo devido ao consumo de nozes e frutos silvestres e à escassez de odontologistas competentes. Se isto era mau para os sujeitos de então, massacrados por dores e pela impossibilidade de sorrir sem afugentar uma manada de bois, é terrível para os académicos da actualidade, até agora convencidos de que as doenças dos dentes só haviam chegado com a agricultura, a sedentarização e as guloseimas da Ferrero.
Aliás, enquanto abala uma convicção da ciência, a descoberta, e o espanto associado à descoberta, confirma uma suspeita do senso comum: há em muita gente a tendência para se achar que antigamente é que se vivia bem. Não importa se o "antigamente" em causa é a pré-história, a Idade Média, a Era Revolucionária ou 1935, nem se a esperança de vida não ia além dos 30 anos, de resto passados em inomináveis agonias. O facto é que, numa adaptação livre das patranhas do "bom selvagem", estudiosos e leigos exibem uma propensão para mitificar o passado em detrimento, perdoem a redundância, do presente. Dantes, quando e onde quer que fosse, a espécie levava uma existência equilibrada, mesmo que os molares se esfarelassem na adolescência, as infecções devorassem membros inteiros e a fome consumisse sociedades sem deixar rasto. O fundamental é que estávamos em harmonia com a natureza. E hoje não estamos.
Hoje, no Ocidente e não apenas no Ocidente, beneficiamos de habitação, alimentação, saúde e conforto geral a uma escala que os nossos antepassados, entretidos a enfrentar o escorbuto e as consequências da procriação consanguínea, não conseguiam sonhar. Ainda assim, não falta quem, sentado numa sala quentinha a bebericar um latte da Starbucks, desabafe no MacBook as saudades da época feliz em que se trocavam mulheres por cabritos e o apogeu da tecnologia consistia no método de cozedura e defumação utilizado para encolher as cabeças dos inimigos. Paira, até em certa "inteligência", uma peculiar culpa pela forma como o Homem se libertou do primitivismo em prol do bem-estar, o exacto bem-estar que permite angústias do género. Com frequência, o progresso faz-se contra os progressistas, incluindo os que usam Colgate.»
Alberto Gonçalves, "Bons tempos" | revista Sábado, 16.Jan.2014