sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Acordo Ortográfico [87]

«Ao estabelecer uma ortografia unificada, o acordo ortográfico (AO) iria facilitar a circulação do livro português no Brasil. Este foi, entre muito outros, um dos argumentos brandidos em favor da sua aplicação. Agora que, tanto em Portugal como no Brasil, boa parte das editoras adoptaram o acordo, essa promessa começa já a concretizar-se? A resposta parece ser negativa.
Entre os três principais grupos editoriais portugueses, dois adoptaram o AO, abrindo apenas excepção para autores que rejeitem expressamente a nova ortografia. É essa a política da Porto Editora e da LeYa. No grupo Babel, cujo presidente, Paulo Teixeira Pinto, se opõe publicamente ao AO, segue-se a lógica inversa […]»
Luís Miguel Queirós, "Acordo ortográfico não abriu o mercado brasileiro ao livro português" | Público online, 28.Fev.2014

Em que param as modas:

«Hotel alberga tudo»

«[…]
os espectros de Freud habitam este Hotel. Digamos que ele nos oferece, simultaneamente, uma modulação da blasfémia, o riso olímpico e demente, o escândalo irreparável, o rumor subtil da prosa; e que põe a uma saudável distância as coisas edificantes e as mediocridades miméticas a que se entrega grande parte da ficção narrativa, ingénua e pálida, que por cá se faz e se festeja. Encontramos nele o jogo grandioso que atinge os cumes da ironia e do riso, mas também a síntese das ideias, o que nos faz pensar na liberdade e no universo heteróclito do romance do século XVIII.
Hotel alberga tudo: tanto o jogo narrativo e os prodígios da construção e da imaginação como o discurso da teoria e das ideias; tanto se compraz no engenho argumentativo como na eloquência clássica; tanto é voltado para o baixo materialismo como para o pensamento especulativo. Na sua composição, ele é de uma total impureza, uma mistura de géneros: romance filosófico, gótico, de mistério, fantástico, de vampiros, erótico e pornográfico.
A estes géneros tradicionais e codificados poderíamos ainda acrescentar outro do qual ele é — ousamos supor — o inventor: o romance de arquitectura. Para o esclarecimento deste eclectismo, entremos na história: um homem chamado Joaquim Heliodoro (que se apresenta com abundantes pergaminhos onomásticos: Joaquim Heliodoro de Ataíde e Pinto Winzengerode de Mascarenhas Adrião Manoel de Menezes) investe na compra de um palacete o dinheiro que ganhou no Euromilhões e transforma-o num hotel singular, tanto nas regras como na arquitectura; um verdadeiro labirinto, feito para as pessoas se perderem lá dentro.
[…]
o dono do hotel, figura misteriosa e vampiresca, com uma aparência física algo repulsiva, criou uma arquitectura para satisfazer o seu vício e os seus prazeres. Esse vício tem um nome: escopofilia. Consiste em desviar para o olhar toda a fonte de satisfação sexual. É aquilo a que se chama vulgarmente voyeurismo.
[…]»
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«A cultura de direita»

«Há algumas semanas, o jurista e historiador António Araújo publicou no seu blogue, Malomil, um ensaio sobre A cultura de direita em Portugal. O corpus da “cultura de direita” aí seleccionado e analisado situa-se exclusivamente no pós-25 de Abril e faz parte, inteiramente, da cultura popular urbana, jornalística e, de um modo geral, frívola. Mesmo um Agostinho da Silva — referido de passagem — surge enquanto fenómeno mediático. Devemos concluir que o autor do ensaio não encontrou exemplos da “cultura de direita” na nossa cultura erudita. E não é fácil encontrá-los.
[…]
Manuel Alegre, que é de esquerda, tem uma concepção da poesia e da figura do poeta nitidamente de direita […]
[…]
quanto mais nos aproximamos do nosso tempo, mais difícil é definir uma cultura de direita porque ela tende a ser, como a de esquerda, um realismo, e a sua doutrina fundamental consiste numa adesão ao individualismo liberal. A cultura de direita converteu-se ao pragmatismo económico e, no essencial, fala uma linguagem que, aliás, a esquerda não consegue ultrapassar, nem se esforça por isso. Em suma, abandonou completamente os livros e as bibliotecas e instalou-se nas televisões, nos jornais, nos ministérios e nos escritórios. 
[…]
Em Portugal, mais do que uma cultura de direita, o que temos são famílias de direita. Isto é: muito sangue e pouca cultura.»

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Hífen maldito

Paco de Lucía, 21.Dez.1947 – 26.Fev.2014

domingo, 23 de fevereiro de 2014

A dicção perfeita do menino Francisco

Anteontem à tarde, na RTP 1, em directo.

Do errado haver ao existir impróprio

Nas duas décadas mais recentes de profissão, tenho convivido com muitos e variados técnicos formados em gestão [brrr!] de recursos humanos [brrr!, brrr!] e em teodiceias similares. Entre outras idiossincrasias e modas, do tempo e do estrato escolar, a propensão para o uso de “existir” em vez de “haver” não é das menos notórias. A relutância ao “haver” em benefício do quase sempre menos próprio “existir” [há razões / existem razões] continua a afigurar-se-me misteriosa. Tentativa parva de sofisticação do discurso? Talvez. Faz lembrar as boas maneiras na restauração:
- Quer a água fresca ou natural? ["Querer" é liminarmente ordinário.]
- Vai querer sobremesa? [A conjugação perifrástica atenua a ordinarice, mas ainda não são modos de se dirigir ao cliente.]
- Vai pretender café? [Melhora um pouco, mas "pretender" também tem o seu quê de agreste e raia o piroso.]
- Vai desejar um digestivozinho? ["Desejar", voilà!, com o diminutivo canónico no ofício de servir à mesa – que começara no guardanapinho para o bebé e culminará na facturinha -, e assim, sim, se atinge a delicadeza suprema.]
Pelo exemplo junto, parece que a coisa agrava quando se tem mais de uma licenciatura.
Quanto ao Há mesma hora, e em locais diferentes, isso é com o João Marcelino. Ele que ponha ordem na redacção.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Por exemplo, em que radica a excelência da Universidade Católica?

«[…]
Nas últimas três décadas, a palavra mágica que se impôs, primeiro nos Estados Unidos e depois na Europa, é “excelência”. Os centros de investigação e universitários “de excelência” destituíram a “ideia” que tinha presidido à universidade moderna. De Hegel a Derrida, passando por Karl Jaspers e muitos outros, a ideia de universidade foi ganhando definição, em função dos desafios, das ameaças e das solicitações da época. Mas a “excelência”, apesar do amplo uso a que o qualificativo tem hoje direito, permanece um conceito vazio, embora dotado da força cega que lhe é conferida por uma triunfante ideologia da avaliação. Tal como o dinheiro, a excelência non olet, não cheira. E, na medida em que é completamente privada de conteúdo, não é verdadeira nem falsa, mas presta-se ao acordo categórico, a um assentimento respeitoso de todos.
[…]
que pode significar a “excelência”, se partirmos da ideia — um dos factores da famigerada “ideia de universidade” — de que a universidade deve ter a capacidade de produzir conhecimento não consensual e até heterodoxo e oferecer alguma fricção — o contrário da complacência e da submissão — a um sistema que quer funcionar com toda a tranquilidade?
[…]»
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A propósito, nunca será de mais insistir:
«Bobadela, tantos do tal
Reverendo padre Tolentino, lídimo poeta, prosador fecundo, sensível e decerto justa pessoa,
Venho interpelá-lo na sua qualidade de vice-reitor da excelentíssima Universidade Católica que tantas fornadas de altos-quadros tem posto a gerir, a governar e a aconselhar Portugal e parte importante das suas instituições e empresas, para que, por favor, nos elucide, nos informe, nos diga que merda de orientação se inculca, se é que alguma, nas cabecinhas dos seus alunos, designada e principalmente dos cursos de Gestão, Economia e Direito, acerca das duas seguintes singelas coisas: escrúpulo e ganância.
Grato e com os cumprimentos da praxe, contra o que aliás figadalmente sou,
Plúvio.»

«Depois percebi que não seriam os ingleses.»

Quem escreveu a obra literária “Em Busca do Tempo Perdido”?
A. Graham Greene
B. Marcel Proust
C. Michel Crichton
D. Fernando Pessoa
RTP1, “Quem Quer Ser Milionário”, 20.Fev.2014

Como se vê, a indigência inscrita na ordem, assertiva e suavemente jactante, tem outro sainete.
Como é que se diz? É o Portugal que temos: belas praias, povo pacato, estimados clientes, bacalhau à Brás.
Manuela Moura Guedes esteve bem.
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Por via de desenganos:

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ser e deixar de ser

Fundada em ciência proba, a Sábado de hoje que é quinta, informa-me na página 76 de que a probabilidade de ter sido quem sou era «praticamente de 0%», depois de me ter avisado na página 21 de que «a probabilidade de morrer aumenta em função do número de horas que passo sentado em frente à televisão».
Posto o que, não vejo modo mais expedito de aumentar a improbabilidade de morrer, assim trocando as voltas ao destino e honrando a imensississíssima sorte de ter nascido, senão o de passar a ver televisão de pé.
Mitiga as hemorróidas e talvez ajude a entender porque é que «Deus não joga aos dados
Revista Sábado, 20.Fev.2014

Arte contemporânea é que está a dar

«Não sei porque é que os museus, centros de arte e espaços culturais portugueses insistem em fazer todos o mesmo: arte contemporânea. Ou, melhor, sei: permite a troca de favores e dá menos trabalho. A verdade é que não é possível entender e fruir a arte do nosso tempo sem ter uma ideia do que a antecedeu. Somos filhos dos nossos pais e netos dos nossos avós. Pois a genética funciona ainda melhor na arte. [...]»
Jorge Calado, "A Paris de Marville" | Expresso/Atual, 15.Fev.2014

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

Cartão vermelho a António Capucho e outros cartões

Ricardo Araújo Pereira, genial: Lá está.*  António Capucho é bem expulso. Estive a ver as imagens em andamento lento e realmente é bem expulso...

Tom Finney [05.Abr.1922-14.Fev.2014], famoso futebolista inglês, terminou a carreira em 1960, tendo, já “reformado”, vindo a fazer um jogo, esse e mais nenhum, em 1963, contra o Benfica.
Cruzados os factos, parece-me modesto e espartano o uso de um único — só um! — ponto de exclamação para, em lead, se sublinhar a proeza, na verdade transcendente, de Tom Finney: «nunca viu um cartão em 510 jogos!». De não menos assinalável parcimónia, se não sovinice, me parece informar, sem um único ponto de exclamação — nem um! —,  que o mesmo Tom Finney, desafiando a doçura das libelinhas, «Nunca recebeu um cartão amarelo».
Mas só um leitor frívolo e distraído, como eu, poderá espantar-se com coisas destas no Diário de Notícias**, sério, comedido e competente jornal português de referência.

Quanto ao mais, nunca tive a menor simpatia pelo doutor António d'Orey Capucho, eterno político medíocre e agora, pelo que se vê desde Passos Coelho e Fernando Nobre, pavão ressabiado; excelentíssima pessoa decerto.  
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P- Que é feito de ti?

R- Parte do meu filho.

terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Desassombro, decência, coragem.

Rafael Marques, jornalista angolano, entrevistado pelo jornalista português Luís Gouveia Monteiro. Gramática límpida.

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Intermezzo ocioso

«[…] A tónica dominante é o humor negro […]»
Eduardo Pitta serve-se de metalinguagem musical para evidenciar o humor negro nos contos de Miguel Miranda, ignorando que tónica é uma coisa e dominante, três tons e meio acima ou dois tons e meio abaixo, outra; e por isso profere uma inviabilidade desnecessária, de resto muito comum, que, sem sair da música, poderia evitar com uma de duas: a tónica é o humor negro ou a dominante é o humor negro.
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«BACH
No carro tem sempre uns quantos CD do compositor alemão. [Maria João Luís] diz que as sinfonias, sobretudo as de violoncelo, são excelentes ferramentas de desbloqueio, que a inspiram e ajudam a criar. Talvez por ser uma coisa orgânica, que mexe com ela.»
A ilustração escolhida pela NM – capa de um disco de Bach com seis sonatas para órgão – está na cara que só pôde ter vindo da coisa orgânica. De resto, entende-se que não seria fácil arranjar uma capa com sinfonias, sobretudo as de violoncelo, já que Bach não compôs nenhuma e arrisco que nem nas melhores lojas do chinês as há; mas, caramba, era assim tão difícil uma com meia dúzia de suítes?
A snobeira usa ser atrevida.

Com simpatia e para que não digam que sou azedo, aqui deixo para o escritor Eduardo Pitta, para a jornalista Carla Amaro e para a actriz Maria João Luís uma excelente ferramenta de desbloqueio, de fabrico alemão e manufactura russa, em que a tónica é Sol e Ré a dominante.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Miró, briga de filisteus

«Na fastidiosa discussão sobre a venda em leilão dos quadros de Miró, omitiu-se geralmente esta pergunta incómoda, mas indispensável para percebermos o que está em jogo: porque é que aqueles banqueiros do BPN, cúpidos e filisteus de nome próprio — até muito para além do que a lei permite — adquiriram um acervo artístico que agora muitos querem preservar em território nacional, concedendo-lhe uma sublimidade que não aceitam ver trocada por um valor redutível a capital real? A resposta é óbvia e toda a gente a conhece. Porque os banqueiros, na medida em que sabem muito de dinheiro, têm também da arte este saber importante e necessário: as obras de arte circulam como o dinheiro. E se a arte se comporta como o dinheiro é porque o dinheiro se comporta como a arte.
[…]
Nada exprime melhor a natureza mercantil do nosso mundo do que a arte.
[…]
A um Governo como o que temos não queiram os cidadãos ministrar educação artística: é uma tarefa impossível, ociosa, cujo resultado trará sempre pouca arte e muita ideologia. O que é imperdoável é que quem sabe tão bem que arte é dinheiro pareça não estar à altura da regra de que dinheiro é arte.»

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Rui Chafes – O sussurro invisível da arte, palavras, espanto.

«[…]
Alexandra Carita- Se pudesse escolher, em que época e em que sítio gostaria de ter nascido?
Rui Chafes- Em 1266, na Francónia, na Baviera.
[…] Sou absolutamente contra o diletantismo na arte. Acho que é um acumular de anedotas e experiências que nunca passam da superfície. Eu gosto de ir ao fundo, ao osso, à origem do problema.
[…] acredito que uma obra de arte só existe quando é vista pelos outros. […] ao contrário de muitos artistas, trabalho para os outros. Nós vivemos porque os outros existem. Não conheço ninguém que viva sozinho. Morremos… morremos sozinhos. Morremos na mais completa solidão, mas a nossa razão de existir é o facto de os outros também existirem. […] Nós existimos porque existem outras vozes, existem olhos que nos olham.
[…] A morte é o que nos mantém despertos. Não é uma preocupação. […] Acredito que a vida é um milagre, que é preciso defendê-la, que é preciso considerá-la um privilégio. […] Chegámos a um mundo materialista que passa pela banalização do pensamento científico como pela banalização da vida enquanto acontecimento não milagroso.
[…] Acho que a existência de Deus é um detalhe. Todas as doutrinas, e são muitas, que se dedicam ao pensamento mais sistemático e à teologia das diversas possibilidades são doutrinas de raiz filosófica mas que se relacionam com a existência de Deus, que para mim é um detalhe, não a questão. Muito antes da existência de Deus, é o milagre da nossa fragilidade que é mais importante. Em qualquer caso, não tenho dúvida nenhuma de que foram os deuses que criaram os homens, mas também foram os homens que criaram os deuses.
[…] Sou um mero artesão dessas vozes superiores, que me dizem para fazer formas que não entendo. Mas, vendo esse lado telúrico da criação, devo dizer que isso é o que acontece com todos os artistas, a menos que se trate de artistas que acreditem na comunicação e no design, que não é o meu caso.
[…] as obras de arte e as esculturas devem existir no sítio onde fazem sentido. E esta exposição  — O Peso do Paraíso, Gulbenkian, Centro de Arte Moderna, de 13 de Fevereiro a 18 de Maio de 2014, que mostra 25 anos de trabalho e expõe esculturas no exterior e no interior, coloca bem essa questão. Ou seja, as minhas peças existem na natureza mas poderiam existir numa igreja, no espaço sagrado. […] Vejo as galerias, os museus e todos os espaços neutros como asilos onde chegam as peças muito doentes, que não têm onde cair e já perderam o seu terreno. Ao passo que, quando estão no exterior, na natureza, ou no sítio para onde foram criadas, têm vida própria. […]
AC- É um esforço acrescido para si montar uma exposição aqui?
RC- Não é um esforço, mas é um exercício de estranheza. Mas para o fazer fora daqui seriam precisas várias igrejas, várias arquitecturas não profanas. Por outro lado, é como digo, a arte moderna e a igreja cortaram relações.
AC- Você não cortou relações com a igreja?
RC- Não cortei relações com a igreja, mas também nunca fui à igreja. Ou seja, não sou um artista católico, nem protestante, nem budista. Sou um artista tecnicamente agnóstico. […]
AC- Porquê o ferro?
RC- A partir de 1988 comecei a trabalhar a pedra. Isto corresponde a um período em que estava nas Belas-Artes, era estudante, e como tal podia experimentar várias coisas até descobrir e encontrar o meu caminho. Comecei com os materiais, madeiras, plásticos, canas, e aterrei na pedra, no mármore e no calcário. Depois percebi que o ritmo era monumental, lento e que tinha a ver com a polis, e eu não queria ter a ver com a polis, queria ter a ver com o nomadismo. E o ferro é como uma faca que se leva no bolso. Além disso, descobri que a relação com o ferro e com o fogo estava dentro de mim e era o meu futuro, o meu destino.
AC- Mas é um homem de poesia também.
RC- De palavras, sim. Gosto mais de palavras do que de imagens. Ao contrário do que se diz, acredito que uma palavra vale mais do que mil imagens. Acredito mais no poder redentor e salvador de uma palavra do que de uma imagem. Uma palavra pode matar, fazer viver ou curar.
[…] olho sempre para o meu trabalho como uma tentativa, uma tentativa quase sempre falhada. Existem poucas peças, tirando o primeiro entusiasmo — digo sempre que é a melhor peça que já fiz —, que não considere um fracasso. Tenho sempre a ideia de que tudo o que faço são apenas tentativas, são apenas possibilidades, não houve até agora objectos definitivos, não há ainda resultados. […] tenho sempre o receio de que haja uma nova geração de artistas que não tenha essa ética de trabalho. Só acredito no trabalho que tenha uma persistência e uma ética na sua própria natureza. Portanto, todas essas esculturas que tenho feito existem porque há uma oficina. Eu visto o fato de macaco para trabalhar.
[…] A beleza não é a da forma. Mais importante do que a forma é a não-forma, mais importante do que o mundo é o anti-mundo. Ou seja, é tão importante o visível como o invisível, e as palavras, tal como as esculturas, apresentam-nos uma porta de acesso ao invisível. Uma escultura não é bela pela sua forma, mas é bela pelo mundo invisível a que abre as portas. Tal como a leitura. Quando uma criança é estimulada a ler um livro, não é pela beleza das palavras, mas pelo acesso ao mundo invisível. Os dois mundos, visível e invisível, são tão importantes um como o outro. Acontece que há pessoas que só têm acesso ao mundo visível, e isso é pouco. São pessoas que só vêem o que está à frente delas. E a procura da beleza tem a ver com aquilo que está noutro plano e que não se vê. 
[…] Acho que a arte não é para todos, não é para as massas, nem é para a multidão. A arte é um segredo para algumas pessoas. […] A arte é para minorias, para aquelas pessoas que têm ouvidos e olhos e que conseguem ouvir esse sussurro. […] Um artista popular, no sentido de popularidade, é um mal-entendido. Não é um artista. […] essa oferta cínica de uma coisa que parece arte não passa disso mesmo, de um acto de cinismo e de um grande mal-entendido. É mais ignorância da mesma ignorância. Não é arte, é outra coisa qualquer. É um parente do futebol.
[…] A minha ideia é fazer ferro fátuo. É como fazer uma coluna de fumo em ferro. Não acredito em objectos. Acho que as minhas esculturas são acontecimentos no espaço, são sombras. Portanto, trabalho com sombras, com fogo, com palavras, com ferro, mas produzo acontecimentos no espaço. […] Tenho muitas dificuldades com o chão. […] Não sou um escultor do peso, sou um escultor da leveza. […] eu tento que as peças, mesmo que tenham três toneladas, voem. Interessa-me a leveza. […]
AC- O que significa esta exposição antológica para si?
RC- É uma responsabilidade, porque estou a olhar para coisas que foram o caminho que me trouxe até aqui. O caminho foi este, não foi outro. E é um misto de felicidade, mas também de espanto.»  

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Amor

«[…]
Assim começa a carta: Vou fazer oitenta e dois anos. Encolheste seis centímetros em altura, pesas apenas quarenta e cinco quilos e manténs-te bela, graciosa e desejável. Há cinquenta e oito anos que vivemos juntos e amo-te mais do que nunca. Sinto de novo no fundo do peito um vazio devorador que é apenas preenchido com o calor do teu corpo contra o meu.
[…]
Seja o amor sublime e transcendente, seja a paixão romântica, seja o desejo erótico: nenhuma literatura inscreveu estas modalidades no universo conjugal. É certo que o casamento por amor é algo recente, mas ainda assim as grandes histórias de amor surgidas desta nova condição são histórias de traição e de adultério. O amor conjugal só produziu literatura, só encontrou motivação narrativa, enquanto amor ameaçado ou extinto.
[…]»
[Recensão de Carta a D. -  História de um Amor, de André Gorz (tradução de Rui Caeiro), Pianola, Nov.2013]

Transumância entre editoras: comédia, ópera e bailado. Casos de José Saramago e de Manuel Gusmão.

«[…]
Tal coisa chamada concorrência é uma comédia teatral. Através das várias chancelas editoriais que detêm, a sobreconcentrada Porto Editora e a cada vez menos concentrada Leya encenam, no seu interior, o espectáculo da concorrência que permite salvar as aparências.
[…]
entretanto, num palco das traseiras, quase deserto, para onde a Leya já só convoca o staff da liquidação e da limpeza, tinha lugar uma cena muito mais interessante. Essa cena não tem nada de operático, não oferece golpes editoriais que se tomam por obra de arte total. Consiste apenas num passo inesperado que é uma outra forma de arte, liberta do aparato kitsch, em torno de um lago de cisnes, do bailado editorial: Manuel Gusmão, considerado um dos maiores poetas portugueses contemporâneos, começou a reeditar os seus livros nas edições Avante.
[…]
A canibalização da Leya pela Porto Editora é apenas o acto final de um processo em cadeia que se desenrola há alguns anos.
[…]»

Rogério Casanova

na LER de Fevereiro de 2014:


Pastoral Portuguesa

- ‘O Antologista’ – a propósito do centenário de William Burroughs [05.Fev.1914-02.Ago.1997]

«[…]

Enquanto Norman Mailer feria a sua esposa com um canivete, Burroughs matava a sua com um tiro na cabeça. Céline ou Pound sinalizaram a sua misantropia com insultos raciais; Burroughs preferiu declarar que todo o género feminino era um erro biológico e que, assim que o vexante problema da reprodução fosse resolvido, o extermínio de todas as mulheres seria um passo necessário e benéfico.

[…]

Uma das suas últimas narrativas publicadas, The Place of Dead Roads, inclui uma rotina escatológica em que a rainha de Inglaterra é assassinada por uma guerrilha homossexual, que a bombardeia com gases intestinais*.

[…]»

- ‘Consultório literário’

«Agora que temos nova tradução portuguesa, pode dizer-nos se concorda com a opinião expressa por um conhecido escritor português de que a leitura do Ulisses é um acto de masoquismo**?» - Carla Gomes

«Cara Carla,

[…]

Ulisses sempre me pareceu uma escolha estranha para esta batalha (quando logo ali ao lado, em Finnegans Wake, há um candidato mais plausível). É um romance cuja principal estratégia artística é a correcção de todas as percepções não-examinadas sobre a realidade e sobre as convenções que usamos para a representar. Mas todo o esforço que exige é amplamente recompensado.

Exactamente o mesmo, suponho, que algumas pessoas dirão sobre grampos para mamilos.»

__________________________________

* Vacas de Rasdorf, voilà

** «[…] O cubismo é desconstrução. Ah, uma pintura de Picasso é bonita. Não, não é bonita. Nem Picasso queria que fosse. Ele está a cultivar o feio. Stravinsky faz música que são guinchos. O truque está justamente aí. Isto contagia a literatura. Ler o "Ulisses" do Joyce é um exercício de masoquismo. Ele leva duas páginas a descrever um armário. […]

José Rodrigues dos Santos em entrevista a Maria Ramos Silva, no i de 05.Out.2013


- x - 


Deixar saudades e corrigir dicionários”, acerca da literatura obituária.

«[…]

um jornal português teve em arquivo, durante quase uma década, o obituário de uma figura pública de frustrante longevidade, no qual se podia ler uma comovida declaração de Urbano Tavares Rodrigues. O suposto falecido sobreviveu-lhe – e arrisca-se a sobreviver ao jornal.

[…]

Da preservação poética de uma memória passou-se a um protocolo social - em prosa. Mas o objectivo do obituário obrigaria sempre a um impossível acto de equilibrismo: mesmo perante a morte da celebridade mais amada e consensual, haverá sempre um abismo entre as necessidades da família e as necessidades do público, um abismo que o melhor epitáfio é incapaz de transpor. A emoção individual é intransmissível; a emoção colectiva é, por definição, um cliché. Na ausência de um meio-termo, não admira que se tenha optado pelo cliché. Alguns lugares-comuns, afinal, podem ser revitalizados: pelas circunstâncias, pela força da repetição, pela sensação de que o banal só é dito quando mais nada há a dizer.

Hoje, sabemos quase sempre com que contar quando morre uma figura pública. Quem parte (quem desaparece do nosso convívio) é um ícone, uma figura emblemática, ou uma figura incontornável. A sua morte é uma perda irreparável, e causa um profundo pesar. A sua ausência deixa saudades. Na sua vida, permaneceu sempre fiel a qualquer coisa, geralmente aos seus princípios, ou às suas convicções.

[…]

Nabokov, no seu ensaio The Art of Literature and Common Sense, recorda uma tira de banda desenhada: um limpa-chaminés, caindo do telhado de um edifício alto, observa durante a queda um cartaz com um erro ortográfico e interroga-se, em voo picado, porque ninguém se dera ao trabalho de o corrigir.

[…]

O obituário inverte esta ordem da especulação: dá-nos a morte, sem espinhas; dá-nos o suficiente da vida para preencher as lacunas e recombinar os fragmentos; e empresta aos mortos o tempo que já não têm, para que vivam um pequeno número de vidas adicionais, na imaginação de terceiros.»

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

Autobiografia

17 de Novembro de 1990
Com a ajuda de um dos meus irmãos, ajeitei o corpo da minha mãe no caixão* – escusa, caríssima leitora, de fazer essa cara de estupor, que ela já não estava ali - e larguei-me a chorar. Pelas razões do costume mas talvez sobretudo por uma: percebia finalmente o significado completo de cortar o cordão umbilical.

Este verbete estava para se chamar “Morrescer” mas quem manda sou eu.
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* O meu irmão, com a minha ajuda, fez o mesmo.

Tareia no Dacosta, que ele merece.

Sobre O Botequim da Liberdade, de Fernando Dacosta:

«[…]

O episódio no Porto (…) está mal contado e falta-lhe todo o contexto.(…)

Há mais deslizes. (…) Há um episódio narrado em dois parágrafos que está cheio de erros grosseiros. Uma estória que se passou em Nova Iorque é contada como tendo ocorrido em Marrocos. (…) não é de confiança em termos de factos, dados, pormenores. As citações de Natália são quase todas reproduzidas de cor, recriadas a grande distância.

[…]»

Onésimo Teotónio Almeida, “Uma estátua (impressionista) para Natália Correia| LER, Fev.2014

«Eu bordo em volta do distante.»

«[...]
Ana Soromenho- É um optimista, portanto.
José-Augusto França- Vieira de Almeida, o professor que me ensinou a pensar, dizia: A inteligência vence. O optimismo é uma folie, mas o pessimismo uma desgraça. Não há um progresso linear. Sabemos que a História não se repete. Gagueja. Pode voltar atrás, há coincidências ou não, descobrem-se as causas e avança-se.
AS- Para um historiador, o acaso não existe?
J-AF- Já dizia o Almada: Não há um mal-entendido com as coisas. Há sempre causas para os acasos. Os acasos são uma ignorância das causas, que são múltiplas, polissémicas, e nunca lineares. Um historiador deve saber isso.
[...]» 
Como é que esta conversa não se tornou viral?
Sei: este país é mais Teresa Guilherme.
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«[...] Tinha chegado de Itália, onde vira pela primeira vez 'A Flagelação', do Piero Della Francesca, num pequeno museu em Urbino - para mim, continua a ser o grande quadro -, e escrevi um artigo no 'Comércio do Porto'. O Almada leu-o e telefonou três vezes para minha casa até me apanhar, para dizer que tinha gostado muito. Eu era um rapazinho de 25 anos e senti uma honra extraordinária. [...]»
- Idem, ibidem