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“Pastoral Portuguesa”
«[…]
Enquanto Norman Mailer feria a sua esposa com um canivete, Burroughs
matava a sua com um tiro na cabeça. Céline ou Pound sinalizaram a sua
misantropia com insultos raciais; Burroughs preferiu declarar que todo o género
feminino era um erro biológico e que, assim que o vexante problema da
reprodução fosse resolvido, o extermínio de todas as mulheres seria um passo
necessário e benéfico.
[…]
Uma das suas últimas narrativas publicadas, The Place of Dead Roads,
inclui uma rotina escatológica em que a rainha de Inglaterra é assassinada por
uma guerrilha homossexual, que a bombardeia com gases intestinais*.
[…]»
- ‘Consultório literário’
«Agora que temos
nova tradução portuguesa, pode dizer-nos se concorda com a opinião expressa por
um conhecido escritor português de que a leitura do Ulisses é um acto de masoquismo**?» - Carla
Gomes
«Cara Carla,
[…]
Ulisses sempre me pareceu uma escolha estranha para esta batalha
(quando logo ali ao lado, em Finnegans Wake, há um candidato mais plausível). É
um romance cuja principal estratégia artística é a correcção de todas as
percepções não-examinadas sobre a realidade e sobre as convenções que usamos
para a representar. Mas todo o esforço que exige é amplamente recompensado.
Exactamente o mesmo, suponho, que algumas pessoas dirão sobre grampos
para mamilos.»
__________________________________
** «[…] O cubismo
é desconstrução. Ah, uma pintura de Picasso é bonita. Não, não é bonita. Nem
Picasso queria que fosse. Ele está a cultivar o feio. Stravinsky faz música que
são guinchos. O truque está justamente aí. Isto contagia a literatura. Ler o
"Ulisses" do Joyce é um exercício de masoquismo. Ele leva duas
páginas a descrever um armário. […]
- x -
“Deixar saudades e corrigir
dicionários”, acerca da literatura obituária.
«[…]
um jornal português teve em arquivo, durante quase uma década, o obituário de uma figura pública de frustrante longevidade, no qual se podia ler
uma comovida declaração de Urbano Tavares Rodrigues. O suposto falecido
sobreviveu-lhe – e arrisca-se a sobreviver ao jornal.
[…]
Da preservação poética de uma memória passou-se a um protocolo social -
em prosa. Mas o objectivo do obituário obrigaria sempre a um impossível acto de
equilibrismo: mesmo perante a morte da celebridade mais amada e consensual,
haverá sempre um abismo entre as necessidades da família e as necessidades do
público, um abismo que o melhor epitáfio é incapaz de transpor. A emoção
individual é intransmissível; a emoção colectiva é, por definição, um cliché.
Na ausência de um meio-termo, não admira que se tenha optado pelo cliché.
Alguns lugares-comuns, afinal, podem ser revitalizados: pelas circunstâncias,
pela força da repetição, pela sensação de que o banal só é dito quando mais
nada há a dizer.
Hoje, sabemos quase sempre com que contar
quando morre uma figura pública. Quem parte (quem desaparece do nosso
convívio) é um ícone, uma figura emblemática, ou uma figura
incontornável. A sua morte é uma perda irreparável, e causa um profundo
pesar. A sua ausência deixa saudades. Na sua vida, permaneceu sempre fiel a qualquer coisa, geralmente aos seus princípios, ou às suas convicções.
[…]
Nabokov, no seu ensaio The Art of
Literature and Common Sense, recorda uma tira de banda desenhada: um
limpa-chaminés, caindo do telhado de um edifício alto, observa durante a queda
um cartaz com um erro ortográfico e interroga-se, em voo picado, porque ninguém
se dera ao trabalho de o corrigir.
[…]
O obituário inverte esta ordem da
especulação: dá-nos a morte, sem espinhas; dá-nos o suficiente da vida para
preencher as lacunas e recombinar os fragmentos; e empresta aos mortos o tempo
que já não têm, para que vivam um pequeno número de vidas adicionais, na
imaginação de terceiros.»