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os espectros de Freud habitam este Hotel.
Digamos que ele nos oferece, simultaneamente, uma modulação da blasfémia, o
riso olímpico e demente, o escândalo irreparável, o rumor subtil da prosa; e
que põe a uma saudável distância as coisas edificantes e as mediocridades
miméticas a que se entrega grande parte da ficção narrativa, ingénua e pálida,
que por cá se faz e se festeja. Encontramos nele o jogo grandioso que atinge os
cumes da ironia e do riso, mas também a síntese das ideias, o que nos faz pensar
na liberdade e no universo heteróclito do romance do século XVIII.
Hotel alberga tudo: tanto o jogo narrativo e os prodígios da construção
e da imaginação como o discurso da teoria e das ideias; tanto se compraz no
engenho argumentativo como na eloquência clássica; tanto é voltado para o baixo
materialismo como para o pensamento especulativo. Na sua composição, ele é de
uma total impureza, uma mistura de géneros: romance filosófico, gótico, de mistério,
fantástico, de vampiros, erótico e pornográfico.
A estes géneros tradicionais e codificados poderíamos ainda
acrescentar outro do qual ele é — ousamos supor — o inventor: o romance de arquitectura.
Para o esclarecimento deste eclectismo, entremos na história: um homem chamado
Joaquim Heliodoro (que se apresenta com abundantes pergaminhos onomásticos:
Joaquim Heliodoro de Ataíde e Pinto Winzengerode de Mascarenhas Adrião Manoel
de Menezes) investe na compra de um palacete o dinheiro que ganhou no
Euromilhões e transforma-o num hotel singular, tanto nas regras como na arquitectura;
um verdadeiro labirinto, feito para as pessoas se perderem lá dentro.
[…]
o dono do hotel, figura misteriosa e vampiresca, com uma
aparência física algo repulsiva, criou uma arquitectura para satisfazer o seu vício
e os seus prazeres. Esse vício tem um nome: escopofilia. Consiste em desviar
para o olhar toda a fonte de satisfação sexual. É aquilo a que se chama vulgarmente
voyeurismo.
[…]»
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