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Quando a máquina governamental inventa esse novo dispositivo que consiste em taxar os trabalhadores a favor dos que potencialmente oferecem trabalho, o que há aqui de novo é apenas a ausência de máscaras, o desnudamento despudorado, porque naquilo que o dispositivo tem de essencial não há novidades (de resto, a "novilíngua" da nova teologia económica que substituiu os "trabalhadores" por "colaboradores" é, a este respeito, bastante eloquente).
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A célebre exortação de um membro do governo actual a que os portugueses ousem sair da "zona de conforto" consagra a grande utopia do capitalismo na sua fase actual - uma utopia em fase de realização- que é a de uma sociedade em que a totalidade da mais-valia seria proveniente do fenómeno do 'desenrasca-te' generalizado (isto é, "desinstala-te de ti próprio e põe-te a caminho, sem garantias"). Sair da zona de conforto é a nova figura da "Mobilização Total" que desde 1914 já conheceu algumas formas, algumas delas sinistras, como sabemos.
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Quando ouvimos os discursos do primeiro-ministro e do ministro das Finanças que incendiaram o país, percebemos esta coisa dolorosa, que já sabíamos muito bem, mas que se torna obscena quando explicitada tão às claras: que a nossa margem de liberdade é mínima, que somos controlados por dispositivos até aos mínimos detalhes, que entrámos numa contabilidade diabólica e não somos mais do que corpos inertes atravessados por poderosos processos de dessubjectivação, isto é, que nos subtraem à condição de sujeitos.
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