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A língua não é um dom de Deus; a língua é um instrumento. E quando eu ouço dizer “A língua é sagrada”, ou ouço falar do “respeito pela língua”, tenho medo. A língua não tem nada de sagrado, como uma enxada não tem nada de sagrado. Serve, a enxada, para eu cavar a terra; a língua serve para eu falar, para eu escrever, para eu comunicar. É um meio, um meio que às vezes surge quase como um fim; mas todas as vezes que a língua surge como um fim, é preciso suspeitar. Ela, realmente, é um meio, e é preciso reconduzi-la à condição de meio que ela é, não sacralizá-la. Portanto, todos os processos de contaminação da língua me fascinam. Quanto mais contaminada a língua for, mais plástica se torna, e menor poder tem. Realmente, parece que usam a língua como um meio, um meio para contar histórias, mas não: estão a ser utilizados pela língua. A língua é que sabe as histórias que quer que se conte. Porque a língua tem lá todas as histórias; foram estabelecidas ao longo dos séculos.
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a palavra “Deus”. Nós nascemos com essa palavra, ela está por todo o lado. Na arte, na literatura, na filosofia, na educação, por todo o lado. É uma ideia com um significado fortíssimo, um enorme peso. Como a ideia de justiça, a ideia de bem e de mal. É um conceito. Mas é um conceito de uma importância extrema. Porque, possivelmente, a primeira palavra que eu ouvi foi “Deus”. Como não era muito bem comportado, diziam-me: “Olha que Deus castiga-te.” Mas, como digo num livro, acrescentavam “sem pau nem pedra”. Isso aliviou-me um bocado. Assim, esse castigo não interessa nada. Penso que a minha relação com Deus nasceu aí. O pau e a pedra é que interessam, esses é que magoam; o resto não me afecta. Ou não afectava a criança que eu era. [...] Não sou crente. Infelizmente, digo às vezes. O meu olhar não me permite que eu seja crente. Tudo me diz que Deus não existe. Não é mais do que um conceito. Aliás, seria, para mim, aterrorizador que alguma vez se pusesse sequer a possibilidade de Deus existir.
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A propósito de "Suíte e fúria"