Em notícias de mortes costuma-se dizer, sem qualquer declinação sentimental do jornalista, o que me parece bem,
Naufrágio com três mortes... Sete mortos na explosão... Um morto em combate... Nove mortos no tiroteio... Vinte e cinco mortos no descarrilamento... Três mil mortos de gripe... Várias mortes com causas desconhecidas... Outras tantas por falência múltipla de órgãos..., etc.,
já que, como informou Jorge de Sena, directamente de Itália em 01.Abr.1961, «de morte natural nunca ninguém morreu».
Era assim até à vinda da pandemia, governava há quatro anos e meio a propaganda mais assanhada de que na democracia há memória, rebocada pelo brâmane do tempo novo.
Sucede que a retórica do ministério determinou que todas as mortes por covid-19 fossem institucional e invariavelmente lamentadas, e a moléstia pegou-se de tal maneira que nem os pivôs da SIC escaparam, desatando todos a lamentá-las também.
Amostra fresca.
Governo do PS
Jamília Madeira, secretária de Estado Adjunta e da Saúde- Infelizmente, cabe-nos também lamentar a perda de mais uma vida [ela diz pèrda*] para esta doença...** 05.Ago.2020
António Sales, secretário de Estado da Saúde, que começa sempre pelo canónico peçonhento «Boa tarde a todas e a todos»- Temos ainda um total de 1746 óbitos que muito lamentamos.** 07.Ago.2020
António Sales, secretário de Estado da Saúde [mudou de gravata]- Temos ainda um acumulado de 1759 óbitos que muito lamentamos.** 10.Ago.2020
Veremos como amanhã irá falar Marta Temido, ministra [Em tempo]: Adicionalmente, importa referir que se verificaram três óbitos que se lamentam.** 12.Ago.2020
SIC do Balsemão
Ana Patrícia Carvalho- No entanto, há a lamentar mais uma vítima mortal... 05.Ago.2020
Miguel Ribeiro- Há, como disse, a lamentar quatro mortes... 08.Ago.2020
Ana Freitas- A lamentar, mortes há duas, hoje... 11.Ago.2020
Ana Freitas, não fosse termo-nos esquecido- E há, então, mais duas mortes a lamentar. 11.Ago.2020
Rosa Oliveira Pinto- Há também a lamentar duas vítimas mortais. 11.Ago.2020
Rodrigo Guedes de Carvalho- Há a lamentar mais duas mortes... 11.Ago.2020
Por que estranha e selectiva discriminação não se lamentam na SIC as mortes de todas as etiologias?
Ridículos.
Jornalismo servil, mimético, lamentável.
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* perda
** Importa referir adicionalmente que o senhor secretário de Estado é o único que lamenta «muito». A Jamília e a própria Marta apenas lamentam, assim se comprovando — sempre desconfiei disso — que os homens são muito mais sensíveis do que as mulheres.