Quarta, 18 de Março
Com um bom discurso de João Oliveira, o Partido Comunista Português abstém-se no estado de emergência; a "Festa do Avante!" (ainda) não foi cancelada. Faz sentido.
1.ª Descontaminação das ruas de Bobadela, por José operário.
Quinta, 19
Dia do pai
A minha filha mais velha deu-me "A Sociedade do Cansaço", de Byung-Chul Han, de 2010, editado em Portugal em 2014, que começa deste modo, negrito meu:
«Cada época tem as a suas doenças paradigmáticas. Podemos, assim, dizer que existe uma época bacteriana que só durou, porém, quando muito, até à descoberta dos antibióticos. Apesar do medo descomunal de uma pandemia gripal, não vivemos presentemente na época viral. Graças ao desenvolvimento da técnica imunológica, já a conseguimos ultrapassar. [...]» - Página 9
«Cada época tem as a suas doenças paradigmáticas. Podemos, assim, dizer que existe uma época bacteriana que só durou, porém, quando muito, até à descoberta dos antibióticos. Apesar do medo descomunal de uma pandemia gripal, não vivemos presentemente na época viral. Graças ao desenvolvimento da técnica imunológica, já a conseguimos ultrapassar. [...]» - Página 9
Se calhar piou cedo demais. *
«Quando se tratam de casos isolados, obviamente tudo se torna mais complicado. Até agora já assegurámos o repatriamento de cerca de 408 portugueses vindos de mais de quatro continentes.» -António Costa
Nada como um primeiro-ministro rigoroso e exacto. Ficamos mais descansados.
Já agora, «se trata de casos isolados», s.f.f.
Sábado, 21
Dia Mundial da Poesia
Não me atrevo a dizer que José Jorge Letria é melhor poeta do que Manuel Alegre. Não nutrindo especial estima por qualquer deles — tenho-lhes a poesia por igualmente sofrível e a eles por diversamente videirinhos —, acho que os versos de JJL, "A vida triunfa em casa", dão uma cabazada de qualidade e de carpintaria aos do impante cagão de Águeda, "Lisboa ainda". Do poema do Letria ninguém falou; as redes emprenharam com o do Alegre. É do share.
«[...] Vivemos a céu aberto como garimpeiros depois dos aluviões [...]»
Alguém avise sua eminência reverendíssima de que aluvião é um substantivo feminino.
Assisti na RTP 2 a "Linhas Tortas", financiado pelo ICA, produzido por Paulo Branco, escrito por Carmo Afonso, realizado por Rita Nunes, com cameo da guionista acompanhada de Fernanda Câncio na plateia, felizes.
A advogada Carmo Afonso, autora da história, que até nem escreve mal, veste António Almeida, protagonista, de escritor e jornalista. É em tal conformidade e tendo em conta a porrada de gente culta envolvida na urdidura da fita que se torna indesculpável aquele «Tenho de ir Luísa» sem a obrigatória vírgula na Luísa. Cambada de disléxicos!
Vem Pedro Marques Lopes e proclama: «É um filme maravilhoso», «absolutamente extraordinário..., absolutamente extraordinário..., absolutamente extraordinário.» Absolutamente.
Nunca falha. O putedo é coeso e solidário, raramente deslassa. Comem e dançam nos mesmos sítios.**
Domingo, 22
SIC: «[...] As nossas desculpas aos espectadores.»
«nossas desculpas», o caralho!
Terça, 24
«Sei que isto não é apenas geracional, é também “de grupo”, mas a mim, quando estou distraído e oiço “segundo a DGS”, toca-me ainda uma certa “campaínha” histórica.»
Com tantos e lustrosos leitores, espanta que ainda ninguém tenha alertado o doutor Francisco Seixas da Costa para o acento espúrio com que de há muito faz tinir as campainhas.
Entre as 15h11 e as 15h15, durante exactamente 3 minutos e 54 segundos, a CMTV, a propósito da Covid-19, manteve em oráculo «2362 mortos em Portugal».
Tratava-se, claro, do número de infectados - mortos eram 33, mas insistiram sem corrigir. Distracção e incompetência intoleráveis. Mesmo sem querer, a CMTV não engana: sangue e morte pecarão sempre por defeito.
Quarta, 25
2.ª Descontaminação das ruas de Bobadela, pela Senhora da limpeza.
Entretanto, o doutor André Gonçalves Pereira, falecido em 09.Set.2019, continua a pontificar no Conselho Consultivo do Público e o doutor Miguel Esteves Cardoso, casado com Maria João Pinheiro há 20 anos, continua a viver com a Maria João «há quase 13 anos».
É do corona.
É do corona.
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* Acompanhemos Byung-Chul Han:
«[...]
«[...]
Na China e noutros Estados asiáticos como a Coreia do Sul, Hong Kong, Singapura, Taiwan e Japão, não existe uma consciência crítica diante da vigilância digital e do big data. A digitalização embriaga-os directamente. Isso obedece também a um motivo cultural. Na Ásia impera o colectivismo. Não há um individualismo acentuado. O individualismo não é a mesma coisa que o egoísmo, que evidentemente também está muito propagado na Ásia.
Ao que parece o big data é mais eficaz para combater o vírus do que os absurdos fechamentos de fronteiras que hoje estão a ser feitos na Europa. Graças à protecção de dados, entretanto, não é possível na Europa um combate digital do vírus comparável ao asiático. Os fornecedores chineses de telemóveis e de Internet compartilham os dados sensíveis de seus clientes com os serviços de segurança e com os ministérios de saúde. O Estado sabe, portanto, onde estou, com quem me encontro, o que faço, o que procuro, em que penso, o que como, o que compro, aonde me dirijo. É possível que no futuro o Estado controle também a temperatura corporal, o peso, o nível de açúcar no sangue, etc. Uma biopolítica digital que acompanha a psicopolítica digital que controla activamente as pessoas. [...]
Na verdade, vivemos durante muito tempo sem inimigos. A Guerra Fria terminou há muito tempo. Ultimamente até o terrorismo islâmico parecia ter-se deslocado para áreas distantes. Há exactamente dez anos sustentei no meu ensaio "Sociedade do Cansaço" a tese de que vivemos numa época em que o paradigma imunológico perdeu a sua vigência, baseada na negatividade do inimigo. Como nos tempos da Guerra Fria, a sociedade organizada imunologicamente caracteriza-se por viver cercada de fronteiras e de vedações que impedem a circulação acelerada de mercadorias e de capital. A globalização suprime todos esses limites imunitários para dar caminho livre ao capital. Até mesmo a promiscuidade e a permissividade generalizadas, que hoje se propagam por todos os âmbitos vitais, eliminam a negatividade do desconhecido e do inimigo. Os perigos não espreitam hoje da negatividade do inimigo, e sim do excesso de positividade, que se expressa como excesso de rendimento, excesso de produção e excesso de comunicação. A negatividade do inimigo não tem lugar na nossa sociedade ilimitadamente permissiva. A repressão a cargo de outros abre espaço à depressão, a exploração por outros abre espaço à auto-exploração voluntária e à auto-optimização. Na sociedade do rendimento guerreia-se sobretudo contra si mesmo. [...]
O vírus não vencerá o capitalismo. A revolução viral não chegará a ocorrer. Nenhum vírus é capaz de fazer a revolução. O vírus isola-nos e individualiza-nos. Não gera nenhum sentimento colectivo forte. De alguma maneira, cada um preocupa-se somente com a sua própria sobrevivência. A solidariedade que consiste em guardar distâncias mútuas não é uma solidariedade que permita sonhar com uma sociedade diferente, mais pacífica, mais justa. Não podemos deixar a revolução nas mãos do vírus. Precisamos de acreditar que após o vírus virá uma revolução humana. Somos NÓS, PESSOAS dotadas de RAZÃO, que precisamos de repensar e de restringir radicalmente o capitalismo destrutivo, e também a nossa ilimitada e destrutiva mobilidade, para nos salvarmos, para salvar o clima e o nosso belo planeta.»
"A emergência viral e o mundo de amanhã" | El País, 22.Mar.2020
"A emergência viral e o mundo de amanhã" | El País, 22.Mar.2020