sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

Salgado é um arcanjo, Sócrates um anjinho

Não negando a incomodidade com a detenção para interrogatório do compincha, José Sócrates falou:

«Há um aspecto que me deixa preocupado e que me causa incómodo e não vou deixar de o referir. … O ponto que me incomodou foi este: foi o facto de a justiça ter decidido levar Ricardo Salgado para ser interrogado sob detenção, tratando-se de crimes, como dizem, de burla, falsificação, fraude fiscal e branqueamento de capitais. O que é que me espantou nisto e que me causa incómodo? … É claro que a justiça tem este poder que lhe foi dado pela lei, mas as explicações que foram dadas até ao momento para se deter…, isto é, porque o acto de detenção significa privar alguém da sua liberdade. É um acto, digamos assim, forte. É uma possibilidade que a justiça tem que só deve usar em circunstâncias devidamente justificadas. É de facto uma situação muito humilhante para o próprio, muito infamante. Se a justiça age de uma forma ou doutra mediante alguém que detém poder ou mediante alguém que caiu em desgraça, isso seria absolutamente horrível. Realmente isso incomodou-me. Eu não vi até hoje nenhuma explicação que me convencesse de que era necessário deter o próprio para o levar a interrogatório. Essas razões que vêm nos jornais são razões um bocadinho pueris e não me convencem. Acho que a justiça ganhava em explicar-nos a todos porque é que deteve Ricardo Salgado, tendo ele, segundo vem nos jornais, tendo-se declarado disponível para responder às questões que lhe queriam colocar, porque é que o deteve e insistiu em que ele fosse responder ao interrogatório sob prisão. O acto de deter alguém para o levar a interrogatório…, porque eu percebo que mediante um crime grave, umas evidências muito fortes …, mas deveria haver mais explicações em relação ao acto de detenção.»
RTP, domingo, 27.Jul.2014 [Versão integral não disponível.]

Exemplo de três abstracções simples, razoáveis ou não, que o amável leitor do Chove nunca lerá nas capelas blogosféricas da socratolatria:
1. Deixemos que a justiça faça o que tem a fazer sem pressa nem precipitação, sem constrangimento nem pressões. Demos tempo ao tempo. Que se investigue e apure tudo, demore o que demorar.
2. Ninguém deve ser responsabilizado pelos amigos que escolhe e mantém.
3. Armando Vara é um cidadão impoluto, sujeito impecável, acima de qualquer suspeita. Gestor e político a quem Portugal deve muito.

Os devotos inoxidáveis de José Sócrates agastam-se com as delongas da justiça, entre outros pecados capitais de que a acusam. Não perdendo de vista a pressa da malandragem em que se investigue pouco e se arquive tudo, manda a honestidade saber que a rapidez judicial não é o requisito mais exigível, nem aconselhável, em todos os contextos de ilicitude como, aliás e por motivação pérfida, ninguém o sabe e pratica mais proveitosamente do que os craques forenses do recurso e da estratégia dilatória.
Por mim, que moro na Bobadela e viajo de passe social, nestes tentaculares e complexos casos de colarinho branco com bandidos espertos e endinheirados, não posso senão apreciar uma justiça competentemente serena e paciente. Vagarosa, se necessário, como os melhores tintos e as boas fodas, sem desdoiro das rapidinhas.*

Já o Correio da Manhã era há muito — desde o ovo, por assim dizer, em 1979 — esgoto a céu aberto, e lá escreviam, por exemplo, Medeiros Ferreira e Emídio Rangel, ambos falecidos em 2014.
Quem foi porventura o maior e mais tenaz amigo que José Sócrates algum dia teve a escrever na imprensa portuguesa?
Emídio Rangel, no Correio da Manhã. Lembro-me de como, ano após ano, sábado atrás de sábado, na coluna "Coisas do circo" o defendia, e aos seus governos, com arreganho e perseverança granítica, contra tudo e contra todos. Também eu, nessa altura, ia por Sócrates, votei nele. Mas entretanto li merdas, ouvi merdas, vi muitas merdas. Não me confino nem me esgoto no JL, na LER, na Colóquio Letras ou no Aspirina B, ai de mim! Tanto que se aprende na merda, senhores! E garanto que há maneira de não nos sujarmos. Seja dito que não insinuo que o CM é pura porcaria; mas lá que a faz, faz, e não pouca. 
Pessoas como Fernando Medina, Rui Moreira, Rui Pereira, Magalhães e Silva, Ana Gomes, Joana Amaral Dias, Baptista-Bastos, Marinho e Pinto, Mário Nogueiraescrevem, algumas falando na televisão do esgoto a céu aberto, avençadas no Correio da Manhã. Devo crer, camarada Valupi**, que só por forte inclinação e comprovado jeito para trabalhos em fossas e sarjetas se dispõem a receber uns trocos da Cofina?

Nisto, dá-se anteontem o caso do 20.º arguido. Novo rebuçadão, como era de esperar, para o esgoto a céu aberto do dia seguinte.
Sorte nossa podermos dispor de alternativas asseadas, sérias, ditas "de referência". Observei duas.
JN: «Banqueiro indiciado por cinco crimes é suspeito de ter corrompido Sócrates». Em jornal dirigido por Afonso Camões, amigo de José Sócrates, confesso que não esperava tantos pormenores na capa.
DN, perdão!, «novo Diário de Notícias». No das bancas, o do anúncio, em papel, chamada no canto inferior direito da capa sem a palavra «crimes», muito menos «cinco», «corrompido» e «Sócrates» nem pensar; na página 9, vá lá, a coisa aparece aceitavelmente desenvolvida por Carlos Rodrigues Lima, mas a doçura da capa é todo um tratado.
Quem sabe no DN online, perdão!, no «novo DN» online tivéssemos mais sumo, melhor e mais pormenorizada compreensão do que levara Ricardo Salgado ao Departamento Central de Investigação e Acção Penal e ao Tribunal Central de Instrução Criminal. Fui ver. Tá quieto ó pret, ups!, ó Plúvio. Uma única chamada na página principal [em português vernáculo, home page]: «Advogados de Sócrates dizem que nova suspeita é "falsa e absurda"», estampando a parelha causídica mais charmosa da galáxia. Só a escarafunchar na secção "Portugal" se chegava a uma informação minimamente jornalística do que, aos olhos da justiça, parece conluiar Sócrates e Salgado.
Daniel Proença de Carvalho, amigo e advogado de José Sócrates, presidente do conselho de administração do grupo a que pertence o DN, e agora colunista; Francisco Proença de Carvalho, seu filho, advogado de Ricardo Salgado. Há lá maior garantia de noticiário sobre Sócrates e Salgado animado por um «jornalismo guardião da verdade, da busca dos factos e liberto das amarras do poder político ou económico»? É este, relembre-se para conforto e confiança dos leitores mais exigentes, o Diário de Notícias do Pedro Marques Lopes.

Mas afinal, Sócrates mente ou não mente?
- Eu sobre Sócrates o que sei é que ele mentiu. Na entrevista que eu lhe fiz [Expresso, 19.Out.2013] ele mentiu, mentiu. E mentiu mesmo! Mentiu bem e mentiu mesmo!
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* «aprendi como é devagar —
comer devagar, sorrir, dormir devagar, cagar e foder —
aprendi devagar.»
Herberto Helder

** Valupi, curioso mas impossível anagrama feminino de Plúvio, e este, anagrama masculino daquele, honni soit qui mal y pense.