terça-feira, 19 de novembro de 2019

José Mário Branco [Porto, 25.Mai.1942 - Lisboa, 19.Nov.2019], talentoso filho dum seminarista

Nem sempre estou de acordo comigo. Mas hoje quero reiterar com ênfase o que o Plúvio aqui escreveu em 2011:

«[...]
O meu pai fez o seminário todo. Até há uma história engraçada. A do meu avô paterno que não conheci por essa razão. A minha avó era uma beata do caraças, ele era republicano e ateu militante, daqueles "bigodaças" da viragem do século. A senhora tanto sarrazinou o homem que o obrigou a pôr o meu pai, que era o filho mais velho, no seminário de Tui, nos Franciscanos da Galiza. O meu avô, às tantas, perdeu a paciência e disse: Queres o teu filho no seminário? Está bem. Foi levá-lo e, na viagem de regresso, matou-se com um tiro na cabeça. O meu pai soube disso — estamos a falar de um puto de oito anos —, mas fez o curso todo porque na altura havia essa coisa medieval de o seminário dar acesso a um curso superior à borla.
[...]»

«[...]
O talento é uma forma de competência das condições adversas da ignorância. O talento normalmente é uma forma inata... não foi estudado nem construído, e essa forma de incompetência é uma vantagem incrível. Tem de haver um pathos, uma densidade emocional...
[...]»

«[...]
Nunca fui político, fui para a política por ser um criador artístico para quem a liberdade é fundamental na criação. O acto criativo é um acto de liberdade. A folha está em branco e o microfone está à espera de ouvir alguma coisa. A ausência de canção é a página em branco. Então, eu ponho lá o que quiser. Ora, isto implica ser livre. Estar descondicionado. O Courbet tem aquele quadro espantoso que se chama “A Origem do Mundo com uma mulher deitada, de pernas abertas e o sexo em grande plano. Há uma carta dele ao Ministro da Cultura francês da época que lhe deu a Legião de Honra, a condecoração mais alta. Na carta, ele diz que não quer receber de uma maneira muito simples e educada, separando a sua relação do poder.
[...]» 

«[...]
Tudo o que consta do arquivo está disponível de forma gratuita*. Há muito tempo que eu tenho esta convicção — com a reacção das pessoas às canções e aos discos, comecei a dar conta de que eu não sou dono. Pensando mais filosoficamente, sou contra a própria noção de direito de autor. Claro que eu recebo direitos de autor, actualmente é a parte mais importante do meu ganha-pão, mas eu aceito isso como uma forma defeituosa, um mal menor, de a comunidade a que eu pertenço me dizer: Eh, pá, porreiro, é giro tu trabalhares nisso e nós queremos que tu continues. Recebo todas as semanas dezenas de pedidos de utilização da minha obra para espectáculos, para publicações, para todo o género de coisas. E a minha resposta é sempre a mesma: Façam o que quiserem, não tenho nada a ver com isso. Nunca usei nem usarei o direito de autor para condicionar a criatividade e a criação alheia. Nunca.
[...]»

Maravilha em Dó maior.
Feminismo do bom em 1972.
[Atente-se no fabuloso e despojado arranjo das cordas. Curiosidade da 'ficha técnica': lá estava Manuel Jorge Veloso, despenhado há seis dias do maldito hífen** como hoje José Mário Branco. ***]

Nota
Nunca me encantou o lado missionário-prosélito-comunistóide de JMB, que não era pouco nele. Os deuses lhe perdoem, e a mim.
Isto, por exemplo, em defesa e louvor do facínora Cesare Battisti, autor confesso de quatro assassínios recondenado agora pela justiça italiana a prisão perpétua, é um inenarrável horror coral. Esta gente — Aldina Duarte, Camané, João Gil, Paulo de Carvalho, Amélia Muge, Tim... — não tem vergonha? O adjectivo «solidário» na boca destes tropas das causas faz-me erisipela.

«Sou português, pequeno burguês de origem, filho de professores primários. Compositor popular, artista de variedades, aprendiz de feiticeiro. Sou José Mário Branco, 76 anos, do Porto; muito mais vivo que morto. [...]
Em 1958, eu tinha 16 anos, era profundamente crente. ... Saltei directo de uma igreja para a outra.»
JMB, no documentário "Inquietação" (54 minutos) | RTP Memória, 07.Dez.2018
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