terça-feira, 26 de novembro de 2019

117 meses depois, António Guerreiro volta a Veneza

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1. Tratava-se então de arranjar uma solução para a fragilidade desta construção humana plantada sobre as águas e sobre pântanos, onde cada obra de arquitectura foi sempre, ao mesmo tempo, obra de conquista de território, de superfície. Aqui, nunca houve terra firme: nenhum edifício pôde ser construído sem se construir também o solo.
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2. Em oposição a este vazio cultural (apesar do presidente da Câmara ser um eminente filósofo: Massimo Cacciari), Mastinu lembra que nos anos 80 o arquitecto Vittorio Gregotti lançou a ideia de Veneza como a cidade da "nova modernidade". Pouco mais de uma década depois, em 1993, já outro nome importante da Escola de Arquitectura de Veneza, Manfredo Tafuri, substituía a visão utópica por um diagnóstico cruel: Veneza apresentava-se-lhe como um "cadáver em liquefacção diante dos nossos olhos". Citando esse texto, um dos mais ilustres habitantes actuais da cidade, o filósofo Giorgio Agamben, escreveu há dois anos que Veneza tinha passado à fase seguinte: já não a do cadáver, mas a do espectro, isto é, "a de um morto que surge inesperadamente, de preferência a horas nocturnas".
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3. Caminha-se assim para uma cidade em que tudo é falso. Nem sequer já os gondolieri são de Veneza. O que não deixa de ser uma situação cómica, se pensarmos que há uns anos Cacciari queria exigir direitos, em nome da 'marca Veneza', pelas réplicas venezianas construídas em Las Vegas. Eis a ironia máxima da reversibilidade: Las Vegas que imita Veneza que imita Las Vegas.
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4. Em meados de Janeiro, Veneza tinha vivido quase um mês seguido de acqua alta, situação inédita que pôs à prova a proverbial camona dos venezianos, isto é, aquela calma e lentidão que exaspera os que vêm de fora.
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1. esta cidade é uma prodigiosa construção humana plantada sobre as águas e sobre pântanos, onde cada obra de arquitectura foi sempre, ao mesmo tempo, obra de conquista de território, de superfície. Aqui, nunca houve terra firme: nenhum edifício pôde ser construído sem se construir também o solo.
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4. Quando a cidade não ficava inundada com tanta frequência, por tanto tempo e a água não chegava a níveis tão elevados, o fenómeno da acqua alta não conseguia perturbar a proverbial camona dos venezianos, isto é, aquela calma e lentidão que exaspera os que vêm de fora.
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3. Uma variante igualmente catastrófica de “Veneza está a afundar-se!” é “Veneza está a morrer!”. E este alerta já não se refere à acqua alta, mas ao excesso de turistas e à monocultura do turismo, que esvazia a cidade de habitantes e vida autêntica e a enche de fancaria e de falsidade. Nem sequer já os gondolieri são de Veneza. O que não deixa de ser uma situação cómica, se pensarmos que há uns anos o filósofo Massimo Cacciari, por duas vezes presidente da Câmara de Veneza, queria exigir direitos pelas réplicas venezianas construídas em Las Vegas. Ironia da reversibilidade: Las Vegas imitou Veneza que agora imita Las Vegas.
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2. A obra grandiosa e veneranda é hoje o lugar por excelência da melancolia. Nos anos 80, o arquitecto Vittorio Gregotti quis que a cidade superasse a Stimmung mortal e melancólica de todas as mortes em Veneza (não apenas a de Thomas Mann e Visconti) e lançou a ideia de Veneza como a cidade da “nova modernidade”. Não teve grande sucesso: meia dúzia de anos depois, já outro nome importante da Escola de Arquitectura de Veneza, Manfredo Tafuri, renunciava às visões utópicas e entendia que a cidade, doente, tinha antes que ser diagnosticada. E o seu diagnóstico era sem remédio: os sintomas indicavam-lhe que a cidade era um “cadáver em liquefacção diante dos nossos olhos”. Diagnóstico acertado, confirmou o filósofo Giorgio Agamben alguns anos depois, quando habitava nela* e sentia que vivia “entre os espectros”. O espectro é um cadáver que passou a ter uma vida póstuma e fantasmática.»
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* Não sei se perdoe a António Guerreiro ter-nos deixado sem saber onde vive actualmente Giorgio Agamben.