«Deslumbramento
Que me lembre, há dois lugares onde cheguei e logo me vieram as lágrimas aos olhos pelo esplendor excessivo e incomportável do que vi. Um foi no alto da montanha de Taormina, na Sicília, olhando o Etna em frente e a água absurdamente azul transparente do Mediterrâneo, lá em baixo: paisagem criada pelos deuses e preservada pelos homens. O outro foi na catedral de Brasília, paisagem de betão e vidro de Oscar Niemeyer. Dei cinco passos lá dentro e comecei a chorar: foi das raras vezes na vida em que acreditei na existência de um Criador, alguém capaz de criar um Niemeyer – por sua vez capaz de criar a única catedral que conheço em que Deus não esmaga os homens, antes os liberta e os aproxima da condição divina, tal como a podemos imaginar. No também deslumbrante Museu Niemeyer, ao lado da catedral, há um texto dele em que explica porque não é a linha recta que o atrai, mas sim a linha curva - o oposto da arquitectura moderna a que estamos habituados. Mas isso não explica tudo, nem o principal. E o principal, o verdadeiramente eterno, é a modernidade dos edifícios da alameda e do conjunto da Praça dos Três Poderes, que, cinquenta anos depois, parecem feitos no futuro e, cuja beleza, todavia, esteve sempre ali, ao lado da condição humana, à espera que alguém a desenhasse.»
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«O humanista que venerava Estaline
Uma ocasião, ao conduzir à toa por São Paulo, deparei com a Mão de Oscar Niemeyer. A Mão é uma escultura que integra o conjunto de edifícios do Memorial da América Latina, também projectado pelo arquitecto, e, grosso modo, representa o continente a sangrar. Naturalmente, foi concebida enquanto a típica denúncia da opressão que marcou e marca a história daquelas paragens. Contra os tiranos, tudo, não é verdade?
Parece que nem tanto. O autor da Mão manteve uma longa, jovial e pública amizade com o tirano mais duradouro dos séculos XX e, no fundo, XXI: Fidel Castro. Além disso, admirava o tirano mais mortífero de sempre, sob o argumento de que as suas acções se justificavam pela "defesa da revolução": "Estaline era fantástico", declarou numa entrevista.
Ou seja, Niemeyer legitimou através do exemplo os assassinos de que as suas criações fingiam queixar-se. Não se trata apenas de um caso em que a arte é maior do que a vida: a estética de Niemeyer, do desconforto à "disfunção", é discutível; o carácter, uma vergonha sem discussão. Na hora da sua morte, os media chamaram-lhe humanista, conceito que não sendo irónico começa a parecer pejorativo. Ainda iremos a tempo de canonizar Albert Speer?»
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Em tempo
«[…]
O sentimento cívico, fundamento da sua adesão ao Partido
Comunista - a alguém que um dia lhe perguntou porque a mantinha, respondeu com ironia
que era antiga e já era tarde para mudar - deveria vir do avô, ministro do
Tribunal Constitucional, homem de integridade lendária, que morreu sem outros
bens do que a casa onde vivia, na rua que hoje leva o seu nome. Brasília
ressente-se de ter sido desenhada por dois comunistas. É um exemplo de reificação do Estado; do Estado em betão,
de imposição de uma maneira de viver a gente que a rejeita. Niemeyer preferia o
Rio e nele foi sepultado.»