«[…]
as entrevistas aos escritores são um
campo fecundo de tropismos e tendências. De um modo geral, elas tornaram-se um
discurso de complacência e satisfazem as solicitações fúteis do género people:
o escritor fala de si próprio e do seu trabalho literário em registo de
autopromoção e aceitando que tudo seja focalizado na periferia, que o texto
seja um pretexto. Geralmente, o escritor aceita sem reservas nem desvios falar
do modo de produção e escrita dos seus livros, dos seus gostos, das
circunstâncias em que decorre o seu trabalho. A questão mais recorrente é a de
como “surgiu” o livro, como é que tudo começou, como se deu o processo de
“criação”. E, necessariamente, a partir daí tende-se para uma concepção quase
teológica da “criação”: o escritor entrevistado é elevado naquele momento à
condição laicizada do “criador”.
[…]
tornaram-se um género retórico, com os
seus códigos: implicam um conjunto de obrigações e estereótipos aos quais tanto
o entrevistado como o entrevistador respondem quase automaticamente. As
entrevistas aos escritores mais novos — que são as maiores “vítimas” destas
entrevistas, já que elas têm quase sempre um objectivo de apresentação —
revelam ainda uma outra característica que pode ser também confirmada noutras
circunstâncias: escrever, ser escritor, não requer ter lido muito e ter uma
relação forte com a história e a tradição literárias. Esta ausência de um
vínculo memorial com a literatura é um fenómeno completamente novo.
[…]
há hoje um fenómeno novo que é o dos
escritores que não parecem estabelecer um vínculo com o que veio antes deles,
que parecem escrever sem ter verdadeiramente lido. Por isso, mas também por
outros motivos (faltam os espaços para publicar e desapareceram as
solicitações), é cada vez mais rara a crítica de escritores, isto é, os textos
de escritores sobre os livros de outros escritores.
[…]»
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Ainda no Público/Ípsilon de 27.Jun.2014, por António Guerreiro,
"A antiga música",
recensão de A Misericórdia dos Mercados, de Luís Filipe Castro Mendes - Assírio & Alvim, 2014
«Uma poesia de alcance intempestivo, que
salta para fora do seu tempo de maneira a interrogá-lo e a resgatar o que nele
se perdeu.
[…]
quase uma
aposta de um místico sem mística, como se o poeta carregasse consigo o destino
da humanidade e sofresse, de maneira mais trágica do que qualquer outro
indivíduo, o golpe de “misericórdia dos mercados”. Se tudo isto fosse declinado
de maneira ingénua, à maneira de uma celebração da transcendência da palavra
poética e do canto dos poetas, seria insuportável. Mas o que aqui temos é outra
coisa, onde não falta a consciência de si. E o resultado tem algo de
intempestivo, na medida em que se projecta, implicitamemente, contra a poesia do
desencanto do mundo e de si mesma, contra o ascetismo prosaico que suspendeu
toda a crença no “estado de poesia” — uma versão profana do “estado de graça”.
[…]»
[…]»