quarta-feira, 25 de junho de 2014

Porto Editora | Herberto Helder

Em 9 de Junho corrente, na Feira do Livro de Lisboa, testemunhei e deixei-me inadvertidamente envolver no acto principal da encenação reles que vinha constituindo, e prosseguiu, o lançamento pela Porto Editora de "A morte sem mestre", de Herberto Helder, velha e fulgurante galinha-dos-ovos-d'oiro no mercado poético português. *
Acredito, decepcionado, em que Herberto Helder não é alheio a esta nunca vista por cá – enfim, fez-se um ensaio no ano passado com "Servidões" - mescambillha livreira. Por isso, acompanho António Guerreiro, "Herberto e os cálculos editoriais", ou António Araújo,"Herberto, S.A.", entre outros, no que puseram a nu.

O que, aposto, até ao próprio poeta escapou foi o descuido miserável na revisão, com desvios graves, intoleráveis, do original. Confrontei a leitura pelo autor de cinco poemas que integra o pacote de 22,00 € [livro + CD que a Porto Editora, iscando a coisa com engodo rasca comparável ao dos alucinogénios preços em 9, informa ser «de oferta». Não lhes bastava um simples e honesto «Inclui CD»?] com os respectivos textos no livro. Não me restando presumir senão que Herberto Helder lê o que Herberto Helder escreveu, vejam-se as diferenças: 

. HH: «o dia, a noite, o inverno, o inferno»
  No livro: «o dia, a noite, o inferno, o inverno
. HH: «para sempre um jogo ou uma razão,»
  No livro: «para sequer um jogo ou uma razão,»

. HH: «ou mais devagar como sempre acontece a quem espera ainda
  No livro: «ou mais devagar como sempre acontece a quem ainda espera
. HH: «ao vapor de verão no ar onde entram as pessoas,»
  No livro: «ao vapor de verão no ar aonde entram as pessoas,»
. HH: «estio e inverno afora no mundo»
  No livro: «estio e inverno agora no mundo»

. HH: «um pão que se tire do forno e se coma ainda quente por entre as linhas,»
  No livro: «um pão que se tire do forno e se coma quente ainda por entre as linhas,»

Sem diferença.

. HH: «não me queixo de nada do mundo senão do preço das bilhas de gás,»
  No livro: «não me queixo de nada no mundo senão do preço das bilhas de gás,»
. HH: «ou então de já não me venderem fiado»
  No livro: «ou então de mas não venderem fiado»

Se em quatro de cinco poemas é isto, não quero imaginar os atropelos ao original nos 23 que não nos é dado ouvir dizer pelo autor.
Nem a advertência do poeta-energúmeno, conforme António Guerreiro o enaltece, de que «Tudo quanto neste livro possa parecer acidental é de facto intencional.»  ou o pedido no primeiro poema - «peço por isso que um qualquer erro de ortografia ou sentido / seja um grão de sal aberto na boca do bom leitor impuro.» - livram a Porto Editora de nos fazer suspeitar de que uma coisa são os poemas que Herberto Helder escreve e lê, outra os poemas que saem adulterados do prelo.
Por exemplo, sob que desculpa, no poema a um burro velho dê-se-lhe uma pouca de palha velha, páginas 43/47, se faz supor ter HH escrito «[...] vou-me embora pra Parságada, disse então o Manuel Bandeira; [...] Vou-me embora pra Parságada [...]», se o que Manuel Bandeira escreveu, e disse!, foi Pasárgada? Não nos venham com a justificação de que Parságada é de facto intencional ou, dado o poema, assumida  burrada do nosso poeta. Mesmo que, remotamente, fosse erro de HH, para que raios serve o editor, afinal? Inadmissível, meus senhores!

Tende lá paciência, malta da Porto Editora, de cujas produções até costumo gostar, mas desta vez fizeram merda da grossa, insultando e defraudando o «bom leitor impuro», preparado para a côna, para os pintaínhos, para o sufôco e para inúmeros outros cometimentos ortográficos do actual maior poeta português, mas não defendido, nem HH decerto, da incúria e da incompetência a jusante.
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* Um dia depois, 10.Jun.2014,  vendia-se aqui, a custo justo, com 450% [!] de lucro. O que o desinteressado amor à poesia faz...