quinta-feira, 26 de junho de 2014

sobre o tremor do maremoto

«estava o rei em suas câmaras, mandou que lhe trouxessem as
                                                                                  fêmeas,
disse:
entre os sete e os setenta, ineptas, hábeis,
de ao pé das águas,
e lhes imitem o movimento,
ou ásperas, ou raparigas que se desfaçam quase
de serem súbito tocadas,
inacessíveis no sentido mais recôndito,
fúlgidas, frígidas,
fêmeazinhas de cândido repouso carnal,
e então o demónio as possua e elas subam acima de
                                                        qualquer linha,
que em eu, rei, as tocando, logo soçobrem,
logo tremam, gritem, se desfaçam e refaçam e subam
como se Deus as tocasse entre o cu e a côna,
oh fêmeas ininterruptas,
quero-as de todas as raças, longilíneas, espessas, sedosas,
                                                              árduas, amaras,
bravas debaixo das minhas unhas,
ou humílimas como cadelas domésticas domadas pelas
                                                                   palavras,
ou subtis movidas lunaticamente pela forma poética
— quero ser confirmado,
intrínseco,
tornado vasto como dez campos de aveia compacta,
rio fantasista concorrido por outros mais pequenos,
disse: vão à caça e tragam-mas:
nuas, vestidas, violentas, descalças, catorzinhas, inspiradas,
revôltas, ou como óleo entre os dedos,
e que cheirem ou a cabra ou a jasmim 
lírico, difuso, suprarreal, nocturno,
estava o rei em suas câmaras dolorosas e ordenou as
                                                                  músicas,
e perguntou alguém: ¿Salomé, a cabeça de S. João Baptista
sangrando numa bandeja de ouro?
(não a cômo! — gritou ele),
ou a teoria dodecafónica,
ou uma frauta cabreira,
ou a voz acerbadamente fugida da Dietrich,
ou esse fantasma de voz quebrada pelo soluço da Marylin*,
ou Mahala** Jackson,
para ele, rei em suas câmaras, morrer durante a noite
                                                                     inteira?
— só lhe falta a rapariga esquiva que ele pense que é um
                                                                        enigma,
só lhe falta saber tudo,
só lhe falta a mulher para morrer com ele,
a mulher que só há nele, no fundo,
a morta nele que de noite ressuscita,
e pelo dia todo de cada dia da terra
lhe rouba a alma,
o ceptro,
o segredo de ser senhor de tudo
(menos dela que é pensamento sensível
dos elementos juntos dois feito como do mundo,
etc.)
tragam-ma —
e vão trazendo mas nunca lhe trazem a mulher que está nele,
e ele não lhe toca nem de olhos nem de boca nem do nó de
                                                                      um só dedo
da mão que firma o ceptro sobre a terra,
o rei sòzinho no meio das mulheres menos a outra
(que é mãe e filha de todas),
e que pode um rei assim fazer senão deixar que as águas o
                                                                            subam
pelas câmaras acima e afoguem tudo,
como o mundo está sempre à espera que aconteça,
pois está escrito nos livros,
está marcado a fogo nas cabeças,
treme em todos os sentidos de quem vive nas câmaras,
ela nas altas montanhas ele ao rés das águas baixas,
sobre o tremor do maremoto,
sobre a ameaça maior do desejo do seu corpo pelo corpo
                                          que está selado dentro dele,
porque ele é rei apenas no fundo dos espelhos que
                                estremecem cheios de água,
— levem (lavem) a minha cara, eu sou outro,
levem a minha alma,
levem a minha amante e troquem-ma por outra,
outra mais conforme à mulher que não existe,
e ponham tão baixo a música que deitado no chão estreme
só eu a ouça, a música escrita apenas
para a minha loucura, a paixão, a aflição, a explicação
da minha biografia irónica e sensível:
e não se esqueçam: as putas todas e as virgens todas nas
                                                   minhas câmaras vazias,
manda o rei terrífico com voz política,
aquela voz de muito falar já treme um pouco,
que eles não saibam sobretudo que já estou demente
(mas toda a gente sabe),
tragam-me as putas todas, religiosas, profanas ou outras,
o meu pénis tem o tamanho de um ceptro
(e ergue o ceptro que tem cerca de metro e meio,
e na verdade o sexo dele é até maior um pouco),
traspasso-as da côna ao coração
(e que mulher não tremeria de pânico e oculto gozo?),
e assim passa ele o tempo e o medo e o mundo»

Trasladado de "A morte sem mestre", de Herberto Helder
[Páginas 34/38]
Porto Editora
1.ª edição: Maio de 2014
[À venda desde 09.Jun.2014]

«Reservados todos os direitos. Esta publicação não pode ser reproduzida, nem transmitida, no todo ou em parte, por qualquer processo electrónico, mecânico, fotocópia, gravação ou outros, sem prévia autorização escrita da Editora.»
© Porto Editora, 2014

Sou um delinquente.
____________________________________
* A senhora chamava-se Marilyn. *** 
** A senhora chamava-se Mahalia.
Responderá a PE, limpando as mãos à parede da cagada que fez: «não alteramos a intenção do poeta».
Fodam-se.

*** Leitor bem mais atento do que eu, e não menos indignado, vem hoje, 27, chamar-me a atenção para o erro em Marylin, que ontem me escapara. Agradeço-lhe.
Não alcançando com que espécie de intencionalidade poderá HH ter gralhado dois nomes próprios em dois versos consecutivos da página 36, avoluma-se-me penosa dúvida alastrada às 64 páginas da obra: que confiança textual pode merecer esta edição? Pelos vistos, pouca.
A propósito de "A morte sem mestre", começa a impor-se a pertinência de novo livro da Porto Editora. Não direi 2.ª edição  Herberto Helder proíbe-as , mas uma urgente sequela: o Livro de Reclamações. Por mim, dispenso CD de oferta.