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A reacção ao resultado das eleições tinha acabado de
mostrar que estas ora fabricam legitimidade, ora fabricam vencedores, consoante
as necessidades, as argúcias e o jogo das aparências. Por efeito de um relato
jornalístico conformado às regras actuais do storytelling,
toda a disputa política a que estamos assistindo no interior do PS decorre em
termos de competição desportiva ou de novela. Até ao limite do nauseabundo. O
sucesso de Marcelo Rebelo de Sousa deve-se precisamente ao facto de ele entrar
sem pudor nesta linguagem, “naturalizando-a” para consumo das massas. Ele é o
mais alto representante do populismo cultural (algo que devia ser radicalmente
incompatível com a função de professor universitário), um conjunto de
procedimentos e convenções vindos precisamente daqueles que acenam com o perigo
do populismo político e que se encontra sediado nos media. Este aparente
paradoxo de um populismo cultural que se instalou sem resistência por
intermédio daqueles que não parecem alimentar simpatias pelo populismo político
diz-nos que toda a questão do populismo (ou do conjunto de fenómenos que a
palavra hoje designa, no discurso corrente) precisa de ser vista de outra
maneira. Precisa, em primeiro lugar, que se observe e analise esta regra geral:
sempre que há uma intenção populista, é o povo que falta. Por isso é que se
revela tão necessária uma distinção, em que Hannah Arendt insistiu, entre
cultura popular e cultura de massas. Outro paradoxo deste populismo cultural
(observável hoje até nos modos de circulação e legitimação de muita da cultura
erudita) reside no facto de ele, nos momentos em que se entrega a arremedos de
reflexão, gostar tanto de denunciar a “decadência” e a “crise moral”, ou dos
“valores”. Sempre que alguém fala desta maneira, sempre que alguém apela aos
“valores”, podemos ter quase a certeza de que está a reivindicar um novo
conformismo, uma ideologia kitsch reactiva e restauradora,
inimiga de todo o pensamento. A reivindicação dos “valores” segue a par de uma
ideologia ética que se tornou sinónimo de moralidade e se satisfaz com todos os
retornos.
[…]»
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Ainda António Guerreiro, no Público/Ípsilon de hoje,
"Quando a História é profecia", recensão de A História dos Judeus / Encontrar as Palavras / 1000 A.C. — 1492 D.C., de Simon Schama
«Evitando cair nas questões mais controversas da historiografia
judaica, Simon Schama empreendeu um trabalho de grande ambição.
[…]
A história que este livro nos dá a ler abrange um período de
dois milénios e meio: começa por volta do ano 1000 a.C., trazendo à luz o
mercenário Shalomam, ao serviço do exército da Judeia em Elefantina, uma ilha
do Nilo, e acaba em 1492, com a expulsão dos judeus da Península Ibérica.
[…]
Uma tese fundamental atravessa esta História
dos Judeus: a de que eles não se auto-segregaram, por rigidez e
puritanismo cultural e religioso, e sempre tiveram ao longo da sua história uma
atitude favorável à miscigenação; nunca quiseram ser uma parte separada do
mundo em que viviam e, por isso, misturaram-se com os canaanitas, os egípcios,
os persas, os gregos, os romanos, os árabes, etc. A segregação foi-lhes
infligida: o pluralismo judeu é uma das linhas de sentido desta história de Schama.
[…]»