quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Saramago, Fidel e outros mortos

A reboque dos festejos diluvianos da morte* de um déspota barbudo, a RTP exibiu há dias — RTP 3, domingo, 04.Dez.2016 — "Cuba segundo Saramago", reportagem esmerada de Alberto Serra sobre a visita, em Dezembro de 1998/Janeiro de 1999, que o nosso escritor, ungido quatro semanas antes com o Nobel da Literatura, fez a Cuba quando ali se comemorava o 40.º aniversário da destituição de um ditador barbeado. Na comitiva, o lendário companheiro Vasco de que matei saudades.
O que me traz aqui é o momento, na conferência à imprensa estrangeira em Havana, em que um jornalista interpela e apoquenta Saramago com alegadas afirmações suas de reconhecimento de determinadas patifarias do regime castrista. Saramago procura limpar-se vituperando a manipulação e descontextualização do que teria dito um mês antes à TSF**, e alega: «há um ou dois anos, numa esquadra da polícia em Portugal, um sargento, ou cabo ou lá o que era, decapitou um homem (…) Se a imprensa internacional fizesse eco desse caso, facilmente se daria de Portugal uma imagem terrível: "Aqui decapitam as pessoas!"» 

Sacavém, Portugal, Maio de 1996. Que o Correio da Manhã ponha no título "GNR que decapitou suspeito" pouco espanta já que isso é idiossincrático da gazeta de Paulo Fernandes. Agora que o insigne José Saramago, antigo e graduado jornalista, tenha vendido ao mundo uma decapitação de cadáver por uma decapitação de pessoa à moda do DAESH parece-me contrafacção dolosa e insuportável dos factos por parte de quem a par do nobelizado talento convinha que mostrasse algum asseio público.
É certo que quatro anos depois haveria de pronunciar-se publicamente acerca de Cuba com outro discernimento e putativa honestidade. Convenhamos que em Abril de 2003 José Saramago, nascido em Novembro de 1922, ia em idade mais do que razoável para tal clarividência, coisa que, por exemplo e ao invés, é prematuro reconhecer por enquanto no jovem camarada Jerónimo, nascido em Abril de 1947, que em Almada, aos 2 de Dezembro de 2016, com as cinzas do ditador a cirandar pelas estradas caribenhas, proclamou Cuba, sem se rir, a Ilha da Liberdade.***
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* A partir dos 90 morre-se muito.