«[…]
fui-me
apercebendo lentamente de que a língua, que qualquer linguagem, especialmente
na sua articulação, manifesta poder. E há em mim uma grande repugnância pelo
poder, por qualquer forma de poder. O poder dos sentimentos, o poder sobre o
outro. Ora esse poder manifesta-se na linguagem, na chamada fluência – em que
as palavras se procuram umas às outras independentemente daquele que fala.
[…]
a vírgula,
aquela paragem, aquele cortar o fôlego, aquele sopro que se quer prolongar e
não consegue, isso é que é terrífico na escrita. E é por aí que se introduz a
violência.
[…]
Não gosto dos
ícones da pátria, não gosto de pátrias, fronteiras e hinos. Mas o problema é o
ruído. Estou sempre a ouvir gente. Estamos aqui e estamos a ouvir gente. […] E
depois há pouca sobriedade nas palavras, as pessoas falam desesperadamente.
[…]
é impressionante a semelhança que existe para mim entre
um homem morto e um bicho morto. Não consigo estabelecer a dignidade da morte
do homem. É a mesma que na morte de um melro. Um ser morto é isso, e não há muito
mais a dizer sobre ele. Mas isso também está ligado à minha ausência de crença.
Eu bem gostaria de ser crente. A minha morte não vai ser diferente das mortes
dos bichos todos, que morrem porque é essa a
pobreza que nos espera. Não há, para mim, nenhum Deus que nos absolva, que redima, que me dê o que quer que seja.
[…]
Nós vivemos confrontados com uma linguagem que
esqueceu uma quantidade enorme de nomes. […] Agora já não há cegos, há
deficientes visuais. Já não há surdos, há deficientes auditivos. […] Quando se
afasta o cego e se coloca o deficiente visual, ilumina-se de uma maneira
impiedosa o outro. É uma espécie de maldade. E se eu disser: sou cego (ainda
não sou, mas para lá caminho), qual é o problema? Mas se disser que sou
deficiente há uma menorização do meu próprio estatuto como pessoa. As palavras,
mais uma vez, estão carregadas de malignidade.
[…]»