«A palavra mais forte, mais verdadeira, que toca no seu próprio fim,
na sua matéria mais densa e profunda, pode não ser a palavra dita “literária”
(muito embora, paradoxalmente, consiga fazer-nos acreditar na existência da literatura),
não ter a assinatura de um escritor, nem realizar o esforço de se apresentar
sob a forma de poema, de romance, de texto em prosa, de livro. Aliás, os
livros, cujo regime de apresentação na cena da literatura é, em geral, o da
idade do narcisismo, da regressão a uma infantilidade que leva as pessoas a
quererem “exprimir-se” e a introduzir o odioso “eu” por todas as frestas e em
todos os salões de festa a que acedem (a estupidez, diz algures Deleuze, nunca
é muda nem cega), raramente têm um lugar diferencial, uma função de
negatividade, no meio do ruído. Palavras fortes, capazes de nos fazer perceber
que fomos expropriados sem remorso e estamos imersos na pobreza das palavras
que escandem a nossa jornada, são as que podemos ouvir em Vidros Partidos, o filme com que Víctor Erice respondeu a uma encomenda de Guimarães 2012 — Capital Europeia da Cultura. Nesse filme/documentário,
ouvimos o testemunho de homens e mulheres que trabalharam na Fábrica de Fiação
e Tecidos do Rio Vizela, na região do Vale do Ave, fundada em 1845 e encerrada
em 2002. Eles contam a sua experiência na fábrica e comentam uma foto antiga,
que parece ter sido feita numa ocasião festiva, onde aparecem, reunidos ao
longo de mesas de cantina, os operários de então. A foto é inquietante, pelo modo como todos aqueles homens e mulheres, sujeitos de uma história que chegou há muito ao seu fim e que nós já só conhecemos da historiografia, olham para nós e nos interpelam.
[…]
Uma mulher, velha e debilitada, aproveita a ocasião para ler um poema que leva consigo, de uma prima que “escrevia muito bem, desde
muito nova”. E esse poema, que não interrompe nada e apenas prolonga o fluxo
das palavras daquela mulher como um fluxo poético (como aliás, o de todos os
outros ex-trabalhadores da fábrica que testemunham no filme de Erice), soa-nos
como algo capaz de dar a ver a vacuidade da literatura e os seus abjectos
artifícios — aquela que chega até nós mediada pelos protocolos canónicos da
instituição literária. Tal poema é um antídoto contra a saturação intrínseca à
indústria literária, essa coisa ignóbil que dissimula a nossa própria morte.
[…]
chegámos demasiado tarde à literatura, quando
ela já chegou ao seu fim. Nós, leitores, vós, escritores, jamais conseguiremos
atingir, perante a palavra literária, aquele estado de encantamento, que não se
confunde com nenhuma espécie de ingenuidade.
[…]
só raramente conhecemos um escritor que não seja
ao mesmo tempo jornalista, escritor-jornalista com uma missão de reportagem de
si próprio e da sua obra.»
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