terça-feira, 21 de março de 2017

Sobre a Poesia*

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o pó que o tempo traz, que o desastre traz, que os vários fracassos ou mesmo o sucesso trazem, que os vários actos mais ou menos reles de uma vida, conscientes ou não, trazem, tudo isso vai cobrindo de pó espesso as pessoas, as pessoas mais brilhantes ficam apenas pó e por vezes um pedido de socorro. E é isso que o artista faz: atende ao pedido de socorro debaixo do pó: não inventa, limpa. 
Não vai buscar a outro mundo o que é incrível e cria estupefacção. É neste mundo que o artista e o poeta trabalham e pesquisam. Tiram o pó das coisas, dos homens e das mulheres; tiram o pó de cima dos animais e da montanha. E lá de baixo, por vezes, sim, de novo, surge uma certa luz original, um brilho antigo que parece afinal uma invenção, uma descoberta. Mas não. É limpar, limpar.
[...]
Ler poesia, como toda a boa leitura, é uma forma de deslocação. Nos olhos, desde há muito se sabe, é que estão localizados as maiores das viagens. Com os pés avança-se de forma quantitativa, metro e mais metro, quilómetro e mais quilómetro. De cavalo, de carro, de comboio, de avião – eis outras formas quantitativas de viajar. Mas a qualidade essencial da viagem ali está, noutro lado, muitas vezes parada. Toda a viagem é um processo óptico; nada mais. Daí que ler poesia e ler grande literatura seja o verdadeiro processo de deslocação, não no espaço exterior medido com régua, mas no espaço do imaginário – espaço medido pela quantidade de imagens estimulantes que se produzem por minuto (unidade rigorosa: estímulo por minuto). Há versos, bem o sabemos, que multiplicam o número de imagens que um homem ou uma mulher têm na cabeça. E tal efeito de explosão; tal efeito de fazer de um verso muitas imagens, é um efeito muito químico, muito impossível e muito humano. Somos humanos também por isto. Somos humanos também para isto.
[...]»
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Soa-me a que onde está «Ficar agora, então, nas frases que pelo início jamais adivinharemos itinerário e meta.» — 4.º parágrafo do ponto 1. — devesse estar «Ficar agora, então, nas frases de que pelo início jamais adivinharemos itinerário e meta.»