«[…]
Há algo que é
uma constante em mim: pensar muito na morte. É mais do que ter a morte
presente, é uma constante enquanto ponto de partida. […] A pergunta certa não é o que fazemos; é o que fazemos
enquanto estamos vivos. Essa pergunta coloca responsabilidade nas coisas. Por
outro lado, tudo fica mais fácil. Há problemas que parecem importantes que
ficam irrelevantes. Ao responder à pergunta “o que é que faço enquanto não morro?”
dirijo a energia para o que acho essencial e não me disperse.
[…]
Por exemplo, a
palavra “contemplar”. Ganhou uma conotação quase negativa de tão desvalorizada.
“Lá estás tu a contemplar”, ou seja, “lá estás tu a não fazer nada”. Era uma
palavra grandiosa. Uma das origens etimológicas é “estar com o templo”.
Contemplar era decisivo, estar ali com o espaço mais sagrado a tentar perceber
o que está e o que vai acontecer. Hoje se alguém estiver a contemplar corre o
risco de estar a ser insultado como preguiçoso.
[…]»
Gonçalo M.Tavares entrevistado por Isabel Lucas
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«[…]
É um empreendimento monumental, aquele a
que Gonçalo M. Tavares deu o nome de Atlas, mas que é no fundo inclassificável
quanto ao género e, até, quanto à matéria literária e de pensamento
que ele expõe.
[…]
Este Atlas é uma grandiosa montagem e colagem de fragmentos, uma
máquina de distribuir começos, de disseminar pensamento.
[…]
Mas que saber é aquele que nos fornece o Atlas de
Gonçalo M. Tavares? Um saber indefinido, heteróclito, díspar, onde tudo se pode
constituir como objecto de pensamento.
[…]
O Atlas do Corpo e da Imaginação não só convida
o leitor ao passeio errante, à flânerie no seu imenso território, como é ele próprio um
exemplo da arte de passear enquanto algo consubstancial ao pensamento. Ele
caracteriza-se pelo pensamento que deambula, por aquilo a que Ernst Bloch
chamou “pensar efabulante”.
[…]
Ler o mundo é ligar as coisas do mundo. Tudo pode
então ser posto em relação com tudo, não há senão conjunções, mesmo que sejam
disjuntivas. Daí o facto de estarmos sempre a deparar com pensamentos
paradoxais, hipóteses bizarras, proposições que desafiam o senso comum. Este é
um Atlas do Corpo e da Imaginação, não podemos esquecer. Aqui, a imaginação não é tanto
a faculdade da fantasia, aquilo que não podemos ver nem sentir, mas uma
operação com valor epistémico.
[…]
Se tivéssemos de decidir qual é o grande tema deste Atlas, a sua “matéria
de Bretanha”, diríamos que é o pensamento, o pensar. Trata-se de uma espécie de
dança com o que vem à cabeça e se oferece à reflexão. Pensar é sempre um gesto
de auto-consciência e de consciência da linguagem. Isso mesmo, que é praticado,
em acto, ao longo de todo o Atlas, é anunciado de maneira programática logo no
início: Porque pensar também é mudar de posição relativamente à própria
linguagem. Não olhes sempre da mesma maneira para as palavras (pág. 46). Olhar
para as palavras com insistência, até que por fim são elas que olham para ele,
eis o método de Gonçalo M. Tavares. Não é muito diferente da experiência do
espanto de onde se originou a filosofia.»
António Guerreiro, “O mundo é feito para resultar num atlas”