sábado, 28 de dezembro de 2013

Gonçalo M. Tavares | Atlas do Corpo e da Imaginação

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Há algo que é uma constante em mim: pensar muito na morte. É mais do que ter a morte presente, é uma constante enquanto ponto de partida. […] A pergunta certa não é o que fazemos; é o que fazemos enquanto estamos vivos. Essa pergunta coloca responsabilidade nas coisas. Por outro lado, tudo fica mais fácil. Há problemas que parecem importantes que ficam irrelevantes. Ao responder à pergunta “o que é que faço enquanto não morro?” dirijo a energia para o que acho essencial e não me disperse.
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Por exemplo, a palavra “contemplar”. Ganhou uma conotação quase negativa de tão desvalorizada. “Lá estás tu a contemplar”, ou seja, “lá estás tu a não fazer nada”. Era uma palavra grandiosa. Uma das origens etimológicas é “estar com o templo”. Contemplar era decisivo, estar ali com o espaço mais sagrado a tentar perceber o que está e o que vai acontecer. Hoje se alguém estiver a contemplar corre o risco de estar a ser insultado como preguiçoso.
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Gonçalo M.Tavares entrevistado por Isabel Lucas
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É um empreendimento monumental, aquele a que Gonçalo M. Tavares deu o nome de Atlas, mas que é no fundo inclassificável quanto ao género e, até, quanto à matéria literária e de pensamento que ele expõe.
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Este Atlas é uma grandiosa montagem e colagem de fragmentos, uma máquina de distribuir começos, de disseminar pensamento.
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Mas que saber é aquele que nos fornece o Atlas de Gonçalo M. Tavares? Um saber indefinido, heteróclito, díspar, onde tudo se pode constituir como objecto de pensamento.
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O Atlas do Corpo e da Imaginação não só convida o leitor ao passeio errante, à flânerie no seu imenso território, como é ele próprio um exemplo da arte de passear enquanto algo consubstancial ao pensamento. Ele caracteriza-se pelo pensamento que deambula, por aquilo a que Ernst Bloch chamou “pensar efabulante”.
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Ler o mundo é ligar as coisas do mundo. Tudo pode então ser posto em relação com tudo, não há senão conjunções, mesmo que sejam disjuntivas. Daí o facto de estarmos sempre a deparar com pensamentos paradoxais, hipóteses bizarras, proposições que desafiam o senso comum. Este é um Atlas do Corpo e da Imaginação, não podemos esquecer. Aqui, a imaginação não é tanto a faculdade da fantasia, aquilo que não podemos ver nem sentir, mas uma operação com valor epistémico.
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Se tivéssemos de decidir qual é o grande tema deste Atlas, a sua “matéria de Bretanha”, diríamos que é o pensamento, o pensar. Trata-se de uma espécie de dança com o que vem à cabeça e se oferece à reflexão. Pensar é sempre um gesto de auto-consciência e de consciência da linguagem. Isso mesmo, que é praticado, em acto, ao longo de todo o Atlas, é anunciado de maneira programática logo no início: Porque pensar também é mudar de posição relativamente à própria linguagem. Não olhes sempre da mesma maneira para as palavras (pág. 46). Olhar para as palavras com insistência, até que por fim são elas que olham para ele, eis o método de Gonçalo M. Tavares. Não é muito diferente da experiência do espanto de onde se originou a filosofia.»
António Guerreiro, “O mundo é feito para resultar num atlas