sexta-feira, 20 de setembro de 2019

Clima - covanês e ecopaliativos

Pelo que sei de Paulo Tunhas [cunhe-se-lhe o mérito na descoberta do covanês] e de António Guerreiro, os caldos filosóficos em que se movem não poderiam ser mais antipódicos.
É por isso que com certa surpresa — uma vez sem exemplo? — acho afinidade em prosas de ontem e de hoje, dum e doutro. Ou será que também António Guerreiro fala covanês sem que me dê conta?

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Seria preciso o génio de Cole Porter para dar uma ideia, mesmo que ténue, da variedade de pessoas que falam covanês. António Guterres, nas Nações Unidas, fá-lo. O Santo Padre fá-lo. A jovem Greta, no Oceano, fá-lo. Cientistas políticos fazem-no. Artistas aos bandos fazem-no. E cantam: vamos fazê-lo, vamos cantar a emergência. Fernando Alves, na TSF, fá-lo. Donas de casa sentimentais fazem-no. As mais selectas escolas fazem-no. Universitários educados fazem-no. Sociólogos prevenidos fazem-no. E cantam: vamos fazê-lo, vamos cantar a emergência. Catarina e Mariana fazem-no. Marcelo, o Presidente, fá-lo. Heloísa Apolónia fá-lo. O homem do PAN, de olhos fechados, fá-lo. Até Costa e Rio, quando precisam, o fazem. E cantam a letra toda, como os pequineses do Ritz.
A diferença para com Cole Porter, é claro, é que ele falava do que sabia e do que a humanidade sabia, ao passo que os adeptos do covanês contemporâneo, exactamente por este ser uma tradução selvagem de um problema complexo, não sabem, regra geral, do que estão a falar. Nem isso, de resto, é muito importante. O “Frango à Covan” tinha um objecto real, mas o seu nome nada significava. A sua função não era essa. Era soar de uma forma simples. No mundo das ideias, “emergência climática” é um seu perfeito análogo. A mesma ausência de sentido convivendo com um objecto real, o problema da saúde do nosso planeta. E, no seu sem-sentido, impedindo uma verdadeira atenção ao problema. É algo que acontece muitas vezes, nos mais diversos domínios: a gritaria insana vela o objecto que aparentemente a despertou.
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Curioso, e até divertido, é ver como nos vão sendo ministrados todos os dias ecopaliativos. Dizem-nos: viaja o menos possível de avião, vai para a escola ou para o emprego de bicicleta, bebe só água da torneira, reutiliza os sacos plásticos, não deixes a torneira aberta enquanto lavas os dentes, toma atenção a todos os teus gestos quotidianos, torna-te um herói da salvação do planeta (como se o planeta estivesse interessado nos nossos esforços e não continuasse a existir depois de nós, tal como já existia antes de nós). Tudo isto não passa de formas de exorcismo e de recalcamento do medo, ao mesmo tempo que cria a ilusão de que estamos a responder à urgência.
Se olharmos com atenção e utilizarmos o bom senso (nem é preciso muita ciência) facilmente concluímos que muito pouco se faz porque era preciso virar os nossos modos de vida de pernas para o ar para se fazer alguma coisa eficaz (se ainda há tempo para isso porque obviamente não se pára de um dia para o outro um processo que começou há séculos). Não é que devamos continuar a agir como sempre agimos, mas todas estas ideias de boa vontade que surgem todos os dias como injunções acabam por esconder a questão política essencial.
Na verdade, passámos em pouco tempo de uma política com pouquíssima ecologia a uma ecologia de boa vontade à qual falta política. E essa falta torna vãs todas as boas intenções. O que vemos é que continua a ser difícil declinar essas duas palavras ecologia e política sob a forma de uma ecopolítica digna desse nome. Uma ecopolítica à altura dos desafios com que estamos confrontados terá de ser capaz de mostrar que as situações ecológicas, políticas, sociais, económicas, institucionais, tecnológicas e psíquicas estão em total conexão umas com as outras. Sem agir sobre todas estas dimensões, o “impasse planetário” mantém-se. Por isso é que são tão ingénuos os regulamentos avulsos e o pretenso “regresso à natureza” de tonalidade romântica.
Se já estamos a viver em pleno “perigo absoluto”, como afiançam até os cientistas colapsólogos e os catastrofistas esclarecidos, então só podemos concluir que não saímos ainda da imobilidade nem se vislumbra que iremos sair. A culpa é também das nossas representações das catástrofes: pensamos num acontecimento colossal (a Terra submetida a uma terrível operação que tanto pode ser vista como a aniquilação total como a sublime “obra de arte total*), que interrompe abruptamente o curso do mundo e da História.
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