sexta-feira, 8 de maio de 2020

Tempo de Quaresma

O insigne jornalista Ferreira Fernandes, prosador exímio, não resistiu a molhar o bico ditirâmbico no processo de canonização sumária em curso
«[...]
Os cruzamentos de trivela de Quaresma são dos maiores momentos do futebol mundial. Um misto de ciência, pela curva traçada, um sentido dramático pelo espanto de colegas, adversários e público, e uma beleza pegada. Como o outro, Garrincha, também magnífico e demasiado povo, Quaresma teve como destino ser a alegria do povo. [...]
Olhem um cidadão, pelo texto que escreveu* [...]
Ricardo Quaresma é soberbo, costas direitas, cabeça erguida, gola levantada [...]
Ricardo Quaresma voltou ao twitter e publicou: Olhos abertos amigos, a nossa vida é demasiado preciosa para ouvirmos vozes de burros... Que frase política, de quem podia aproveitar-se para soprar no fogo, e não o fez. Sem ter andado em seminário, nem universidade inglesa**, que respeito pela comunidade, a estreita e a Pátria. Que sentido de Estado!
Que sabedoria de quem, sabendo que há problemas, quer resolver e não inquinar. Quanto mais fácil seria, para uma vedeta que tem a sua vida e a dos seus materialmente resolvida, poder juntar a isso a vã glória de cavalgar uma qualquer rebeldia. Os meus, disse Quaresma aos seus e a nós, somos nós todos. Que lição do que é ser português! [...]
Sabia-te artista mas misturado com um bruto. Mas o que tu és é isso tudo e também um homem comovedor. Chapeau. Respect. Dá cá um abraço.
E ontem, ainda no Facebook, publicas a recordação do teu tio-avô, também futebolista, Artur Quaresma, do Belenenses. Num Portugal-Espanha, 1938, ele e dois colegas da selecção e do clube (José Simões e Mariano Amaro), não fizeram a saudação fascista.***  Portugal-Espanha, resultado: um hat-trick, ganhámos nós todos a memória de uma coragem. Não era um gesto sem risco: depois daquilo, Cândido dos Reis, treinador dos três no clube e na selecção, foi parar ao campo de concentração do Tarrafal.
Ricardo Quaresma à escrita*: Ontem como hoje, a família Quaresma sempre soube estar do lado certo da história.
[...]»

* Ferreira Fernandes, entusiasmado e crédulo, acha que é Ricardo Quaresma quem escreve. Não creio. Ao sábio Quaresma jamais escapariam as três vírgulas imprescindíveis nas três jaculatórias com que encerra o manifesto "Todos diferentes, todos iguais":
«[...]
Olhos abertos amigos, o populismo diz sempre que é simples marcar golo mas na verdade marcar um golo exige muita táctica e técnica.
Olhos abertos amigos, o racismo apenas serve para criar guerras entre os homens em que apenas quem as provoca é que ganha algo com isso.
Olhos abertos amigos, a nossa vida é demasiado preciosa para ouvirmos vozes de burros... isto se queremos chegar ao céu.»

Olhos abertos, amigos, se faz o obséquio! Olhos abertos amigos eram os da minha avó Nazaré. 

** Alusão, críptica para a generalidade dos leitores do DN, a André Ventura ter frequentado um seminário e a ter-se doutorado na Universidade de Cork, depois de a Universidade Nova o licenciar em Direito com média final de 19 valores, o que pode não dizer grande coisa; pois se, por exemplo, da selecta Católica e em Direito também saiu licenciado o vira-casacas, videirinho e «tartufo» Pedro Marques Lopes, como alguém um destes dias o tratava no Aspirina Bpardieiro do Valupi — é Valupi, não Plúvio, quem assim classifica o blogue de que é senhorio —, fã de ambos, PML e FF, por sinal grande compincha de Ferreira Fernandesmeu querido Pedro»]...
Ó Ferreira Fernandes, tenha paciência mas fica-lhe péssimo baralhar a Inglaterra monárquica com a República da Irlanda.

*** Muito mais desastrado, porém, andou o jornalista tarimbadíssimo, "maluqinho da bola" que sabe todas as histórias e todos os nomes dela, ao comover-se e deixar-se enrolar em novo manifesto quaresmal — desta vez, despudorada e miseravelmente oportunista — publicado ao fim da manhã de anteontem na "conta oficial" de Ricardo Quaresma no Twitter — «Ontem como hoje, a família Quaresma sempre soube estar do lado certo da história. E nunca se vergou nem teve medo de dizer não ao racismo.» —, tomando Alfredo Quaresma, esse, sim, tio-avô do inefável Ricardo, que jogou nos anos '70 do século XX, por Artur Quaresma, o "anti-fascista", que esteve no activo quatro décadas antes e com quem Ricardo Quaresma não tem nenhum laço familiar.
Volto a supor que alguém anda a escrever em nome de Ricardo Quaresma. Alguma vez a superioridade e o escrúpulo éticos de RQ consentiriam em embarcar no «lado certo da história» à boleia de um tio-avô falsificado? Seja banido da civilização quem tal ouse admitir! Talvez por isso o verdadeiro Quaresma, príncipe caceteiro do bem e da bondade, tenha lesta e diligentemente apagado o tuíte enganoso que inebriou Ferreira Fernandes, fazendo exarar ontem na sua "página oficial" do Facebook um texto de tal elevação literária e tamanho esmero gráfico que auguram para este aríete dos relvados, que aos 36 vai gastando o resto das botas a marcar golos exigentes muito tácticos e técnicos ao serviço de uma agremiação turca de segunda ordem, não direi horizonte de esplendor no areópago das Letras mas, no mínimo, poleiro dourado na academia da Virtude.

De outro e muito brando modo aqui se dá conta do caso.

De resto, quero que André Ventura se foda e desejo que Ferreira Fernandes não precise nunca de disputar com ciganos — RQ é cigano integrado, ciganos são coisa diferente —  a "sua vez" na fila das urgências do Beatriz Ângelo ou do Garcia de Orta, ou na fila de cidadãos socialmente distanciados à entrada de qualquer mercearia de Alfragide. Experimente. E para repor a ordem no Estado de direito democrático convoque o atleta tremebundo
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Daniel Oliveira- Eu acho que ele [Ricardo Quaresma] fez um texto de uma elegância...
Pedro Marques Lopes- ... e bem escrito!
DO- ... e bem escrito. Uma pessoa crente, portanto bastante baseado nisso; o melhor que ser cristão pode ter, o que ali está é o melhor que ser cristão pode ter.
Nada como um apedeuta para convalidar a excelência literária.
E para certificar a ortodoxia da fé, nada como uma criatura que vem desde 02.Jul.1969 caldeando o bestunto ateu nas múltiplas e sucedâneas madrassas do comunismo.
Mas reconheço: o jornalista DO, que leio com assiduidade, escreve benzinho.