quinta-feira, 8 de abril de 2021

Por entre os escolhos inevitáveis dos apoios e contraditas

No n.º 32 da Rua da Liberdade — oh ironia!, para quem chegou ao PS pelo atalho da UDP —, na Figueira da Foz, morreu ontem*, de ataque cardíaco**, um cidadão esperto e bem sucedido, ladino, porreiro e amigalhaço, que nunca primou pela profundidade pública do pensamento e cujo ideário político deixou condensado em Braga ao início da noite de sexta-feira, 30.Mar.2001, quando ameaçou:

Adivinhavelmente, a pena do arlequim engalanou-se de hipérboles estapafúrdias, catalisando a unanimidade louvaminheira nauseante:

«Com o dramático falecimento de Jorge Coelho desaparece uma das mais destacadas personalidades da vida pública portuguesa nas décadas de 80 e 90 e no início deste século, em que foi governante, parlamentar, Conselheiro de Estado, dirigente partidário, analista político e gestor empresarial.
Reunindo grande intuição, espírito combativo, perspicácia política, afabilidade pessoal e sentido de humor, por entre os escolhos inevitáveis dos apoios e das contraditas, deixou na memória dos Portugueses o gesto singular de assumir, em plenitude, a responsabilidade pela Tragédia de Entre-os-Rios *** e a capacidade rara de antecipar o sentir do cidadão comum.
O Presidente da República recorda, com saudade, o amigo e apresenta à sua Família as mais sinceras condolências. ****»

"MORREU JORGE COELHO, O POLÍTICO DE CAUSAS"
Ao passar pelas primeiras páginas dos jornais de hoje, acometeu-me a momentânea ilusão de uma gralha no cabeçalho do Jornal de Negócios. Assim de repente, admiti se não teriam querido dizer «político de queijos»...

Moderem-se, porra! Haja proporção [quantos milhões de «mais destacadas personalidades da vida pública» terá Marcelo no tinteiro?] e, sobretudo, recato na morte.
______________________________________
*

** O coração tem as suas razões ..., bem escreveu um francês que pensava profundo [Blaise Pascal, "Pensées", 1670]. 

*** Num teatro bacoco, casou com a culpa e demitiu-se. No código japonês de ética política, se calhar suicidava-se deixando a culpa viúva...

Marcelo escolheu para a família de Jorge Coelho um grau prestigiante de condolências: "as mais sinceras".
Não é para todos. Por exemplo, e atendendo apenas a mortos da última semana, a família de Conceição Moita, católica antifascista, não mereceu senão condolências singelamente "sentidas"; já os parentes e amigos de Almeida Henriques, autarca de Viseu, tiveram de se contentar com simples "sinceras". 
Os critérios de Marcelo são um frenesim de inescrutabilidade. Se alguma vez o arlequim disser não mais do que «as minhas condolências», que haveremos de pensar de tamanha secura? Muito possivelmente que o falecido se portou mal...