terça-feira, 22 de agosto de 2017

A política e o mantra da decepção

O DN traz hoje uma entrevista de Fernanda Câncio, a quem me liga uma antiga e imarcescível sicofilia, à secretária de Estado da Modernização Administrativa, Graça Fonseca, como Marisa Matias mas na sombra doutra pernada da azinheira, pastorinha do indigesto bonzo de Coimbra. *
A entrevista diz muito de Fernanda Câncio e do actual DN. Graça Fufasseca — trocadilho, perdão, torcadilho soez e gratuito que muito dirá do Plúvio — não diz praticamente nada.
Fernanda Câncio introduz a entrevistada, negritos meus:
«Em Julho, quando três colegas de governo apresentaram a demissão devido ao caso das viagens da Galp, citou o filósofo Daniel Innerarity no Facebook: "A política, especialmente quando queremos distingui-la de outras atividades, exige duas coisas: ter-se dado conta de que o seu terreno próprio é o da contingência; uma especial habilidade para conviver com a decepção."
[...]
Do CES e do estudo da Justiça passou à acção, no respectivo ministério, então — em 2000 — liderado por António Costa. Foi aí que o conheceu e desde então o actual PM levou-a consigo para todo o lado: para o Ministério da Administração Interna em 2006, para a Câmara de Lisboa em 2007, para a lista de deputados por Lisboa nas legislativas de 2015. E para o seu governo, claro.
[...]»

Na parte do Daniel Innerarity repicaram-me sinos na cornadura; mais intensos ainda decerto porque o Big Ben amuou.
Permitam, pois, que repristine uma pequena cronologia.
«[...]
Da política
26.Mai.2001- Daniel Innerarity [Bilbau,1959], político, filósofo e professor basco, publica no El País um artigo de opinião, “Hacer política”,
"A mi juicio, la política, especialmente cuando queremos diferenciarla de otras actividades, exige fundamentalmente dos cosas: primera, haber caído en la cuenta de que su terreno propio es el de la contingencia, y segunda, una especial habilidad para convivir con la decepción. Habrá, sin duda, otras definiciones más exactas, pero seguro que ninguna de ellas deja de recoger, en alguna medida, estas dos propiedades.
[…]
En algún momento hay que recoger el veredicto y hacer con ello la política que se pueda. De ahí que la política sea fundamentalmente un aprendizaje de la decepción. Está incapacitado para la política quien no haya aprendido a gestionar el fracaso o el éxito parcial, porque el éxito absoluto no existe. […]."
2002- Daniel Innerarity publica o livro “La transformación de la política”, no qual plasma, com levíssimas adaptações, o dito artigo.
2005- 1.ª edição portuguesa do livro de Daniel Innerarity, “A Transformação da Política”.
28.Fev.2007- "A seguir ao debate mensal na Assembleia da República, José Sócrates, primeiro-ministro e secretário-geral do PS, juntou-se aos deputados socialistas num colóquio sobre a 'transformação da política na era da globalização', com o filósofo espanhol Daniel Innerarity. […]
Da obra de Daniel Innerarity, que contou ter conhecido quando António Costa lhe ofereceu um livro pelo Natal, Sócrates disse ter retido que 'a política é a aprendizagem permanente do convívio com a decepção', uma frase que o impressionou e iluminou". - Lusa, 01.Mar.2007
13.Mar.2008- Na reportagem da SIC, Sócrates como nunca o viu” [minuto 30:10], José Sócrates flana com Raquel Alexandra: "Sabe, um filósofo espanhol que conheci aliás recentemente — eu leio filósofos espanhóis; eu não conhecia este, é um basco, um homem que conheci aliás pessoalmente —, escreveu um livro que comprei, ou melhor, perdão, que me foi oferecido, aliás, pelo António Costa no Natal de 2005, e que dizia uma coisa muito interessante. Dizia ele que a actividade política é a eterna aprendizagem do convívio com a decepção.
30.Abr.2010- Intervenção de José Sócrates na cerimónia de doutoramento 'Honoris Causa' atribuído pela Universidade da Beira Interior a António Guterres: "Um grande filósofo europeu disse que a política é a eterna aprendizagem do convívio com a decepção. Não posso estar mais de acordo."
18.Out.2010, página 23, folha 115-  "No Salão Nobre do Edifício dos Antigos Paços do Concelho de Lagos, ... a Sra. Vice-Presidente da Câmara Municipal, Maria Joaquina Matos — viria a ser eleita presidente, na lista do PS, em 29.Set.2013 —, parafraseando um filósofo político disse que 'a actividade política é a eterna aprendizagem do convívio com a decepção'."
[...]»

Não é por nada, mas desde a prenda de Costa ao seu dilecto líder Sócrates, cheira-me a que esta gente desatou a ficar levemente ridícula. Mimetismo parolo.

No clímax — quando a entrevistada acaba de assumir que é com mulheres que a atrai foder, nisso não me distinguindo dela; já o velho Alçada Baptista, aristocrata naftalínico, se proclamava fogosamente lésbico — da peça organizada para propaganda das suas causas [que jornalismo, Fernanda Câncio, que jornalismo!...], a entrevistadora injecta o seguinte considerando à guisa de pergunta:
«Harvey Milk, o político americano dos anos 1970 que é uma referência do movimento pelos direitos dos homossexuais, disse, no início da luta, "a privacidade é a nossa pior inimiga". No sentido em que era preciso dizer "eu sou homossexual" como afirmação política.»

Lembrei-me logo daquele Fevereiro de 2009: «Milk, presumo...»
Isto anda tudo ligado.
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* Vá, Plúvio, confessa agora aqui o valente murro no estômago que levaste anteontem do João Taborda da Gama:
«[...] Law against Law é a tese de doutoramento de Boaventura de Sousa Santos. Boaventura, ao contrário do que acha alguma da direita acéfala, e do que deseja alguma da esquerda invejosa que nunca saiu de Portugal, mesmo tendo saído de Portugal, é dos mais interessantes e sólidos pensadores do direito que nasceu em Portugal e dos poucos reconhecidos na academia global (sem dúvida único na sua geração, hoje acompanhado de nomes como Nuno Garoupa e Poiares Maduro). Fui educado numa academia jurídica onde os seus textos não eram sequer referidos e, com certeza por culpa minha, só descobri o Boaventura jurídico há poucos anos, nos Estados Unidos, ultrapassando o preconceito e lendo de rajada o que pude. Pouco importa que não concorde com muito do que diz, e sobretudo com a linha onde se insere (que aliás não esconde), mas são daqueles textos que nos fazem mais espertos e onde se sente o gozo que teve quem os fez, pensou, escreveu. [...]»
"O morro e o asfalto" | DN, 20.Ago.2017

Muito certamente eu estava a pedi-las. Mas não sei se o João me convence com o «Boaventura jurídico».

Peça interessante de Catarina Homem Marques sobre a menstruação. A diferença de género é uma chatice? A igualdade seria.

Nota final quase a destempo.
Francisco Seixas da Costa rotula de Dignidade — sideral, sem um nome, sem um linque — o que, a meu ver, não passa de mero efeito conjuntural oportunista do anticiclone dos Açores. Nada de surpreendente, os apparatchiks, aparato-chiques e prosélitos, precisam regularmente de se comover uns aos outros. Por exemplo, Eduardo Pitta: mal se entra, o monitor lacrimeja.
Ai de nós, simples e imperfeitos normais.