Como por aqui às vezes confesso, engalinho e uso dar um passo atrás de reserva ou desconfiança ante expressões ou afirmações como «falando honestamente», «para lhe ser sincero», «meus sentidos pêsames», «sentida tristeza», «muitos parabéns», «honestidade intelectual», «tenho a consciência tranquila» e quejandos. Os advérbios e os adjectivos soam-me a candonga mental.
Por exemplo, no Público de anteontem, 16 de Outubro, ao fundo da página 18, em que se noticiam prémios de jornalismo e eleições na Ordem dos Enfermeiros, chama-nos a atenção um destaque de aparência poética, sem qualquer indicação de "Publicidade" ou contextualização, que reza assim:
«HOMENAGEM
Patricia KERVIEL & Etienne GUILLÉ
Eminentes cientistas e investigadores franceses, deixaram este plano de realidade.
Pelo seu grandioso legado, pelo contributo dado à humanidade com a descoberta da Ciência dos 18 Sentidos e da Linguagem Quântica da Vida e pelo muito que nos ensinaram, nunca serão esquecidos. Ficarão eternamente nos nossos corações.
O Movimento de Pensamento
da Linguagem Quântica da Vida
presta-lhes uma sentida homenagem.»
Nestas circunstâncias, fico sempre a imaginar como seria a prestação solene e pública de uma homenagem não sentida.
Mas não é só nem principalmente por causa da «sentida homenagem» que venho agora.
Dando de barato que o Público, que leio sem falhas desde o número 1, de 05.Mar.1990, é jornal minimamente asseado, comecei por sentir que «Eminentes cientistas e investigadores» seria coisa para a secção "Ciência" e não para a "Sociedade" que é onde meteram a homenagem. Mas mal li «Ciência dos 18 Sentidos» cheirou-me a esturro exotérico e comecei a achar, uma vez mais, que este diário, que não tem páginas de "Relax" como o circunspecto JN ou de "Convívio" como o sensacionalista CM, dois que também assino*, deveria ser mais prudente em pôr à vista, sem qualquer precaução, pornografias destas.
Patricia Kerviel e, perdão, & Etienne Guillé não me diziam nada. Guglei. Fica o essencial para o meu leitor que tem sempre coisas mais edificantes para fazer.
Étienne Guillé [1937-2018] era este cientista guru de seita seviciante.
Patrice Kerviel [? -2008], filha e discípula de Guillé, figura tutelar do movimento "La Grande Mutation", morreu de cancro na mama, tendo recusado tratamentos convencionais — da, como eles alcunham, medicina alopática —, para, cito, «preservar o seu ser celeste». História mais pormenorizada, aqui. No decénio de 90 do século passado, a 'madame' Kerviel andara por cá com o marido a evangelizar:
«[...] 2 - O apoio didáctico à leitura alquímica da obra de Étienne tem sido dado, em Portugal, por Patrice Kerviel, sua filha e mais fiel transmissora do seu pensamento, e Jean Noel Kerviel, o casal que, desde há cinco anos, realiza regularmente em Lisboa seminários sobre Radiestesia e Alquimia. Esse trabalho de transmitir informação sobre o método iniciático de Étienne Guillé tem sido coadjuvado, através dos chamados "seminários intercalares", por alguns portugueses, nomeadamente Maria Correia Pinto (a primeira pessoa que em Portugal descobriu Étienne), Manuel Fernandes, Afonso Lopes Vieira e José Carlos Alverca.
Face à complexidade da abordagem realizada por Étienne, é urgente, no entanto, que sejam criados Grupos de Estudo para afinar e aprofundar o imenso trabalho que a obra de Étienne reclama. E, mais tarde, será necessário que surjam grupos de 'recherche', tantas vezes sugeridos por Patrice Kerviel, a mais fiel intérprete do método iniciático criado por Étienne Guillé. [...]»
Talvez dê para perceber quem terá pago ao Público a sentida homenagem.
Vale-nos que o Público num dia acolhe aquilo e no dia seguinte, ontem, traz decoro às coisas, desta vez, bem, na secção "Ciência":
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Público desmazelado
- André Gonçalves Pereira morreu em 09.Set.2019. Decorrridos 40 dias, continua a pontificar no Conselho Consultivo do jornal, decerto aconselhando e consultando agora a partir do seu assento etéreo.
- Desde Março de 2013 que o magnífico António Guerreiro está no Público: todas as sextas-feiras, numa coluna que inicialmente se chamava "Estação Meteorológica" e agora se chama, desde Outubro de 2018, "Acção paralela" / "Livro de recitações"; isto, a par de entrevistas, recensões e peças ensaísticas esparsas. Sucede que a gente vai à lista de autores, organizada por ordem alfabética, e António Guerreiro nicles. Em 31.Mai.2017, numa visita às instalações do Público em Lisboa/Alcântara, interpelei directa e pessoalmente o David Dinis, na altura director, quanto a esta lacuna. Ficou muito admirado e disse-me que ia ver do assunto. Até hoje.
- No tal módulo "Autores", cada um deles é apresentado, em regra, numa ficha, mais ou menos sumária, de modo geral redigida pelo próprio. O problema é que raramente cuidam das datas que marcam os seus trajectos e, como a ficha também não tem data de edição, multiplicam-se anacronismos disparatados aos olhos do leitor que consulta a informação e a toma naturalmente por correcta e actualizada no momento da consulta. O caso de Miguel Esteves Cardoso é paradigmático da falta de cuidado. Escreve ele:
«[...] Eu sou uma pessoa feliz, apaixonada pela Maria João, com quem vivo há quase 13 anos. [...]» Assim posto, ficará a viver com a mulher perpetuamente há quase 13 anos. Acontece que MEC casou com Maria João Pinheiro em 2000. Pelo que coabitam há pelo menos 19 anos. Está na cara que o texto de apresentação foi escrito por alturas de 2013. Etc.
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* Quero contrariar com afinco gente como Daniel Oliveira, Pedro Marques Lopes, Valupi ou a doutora Câncio: aprende-se muito nos esgotos a céu aberto e nos caixotes do lixo. Pobre de mim, quão mais ignaro e enganado continuaria se ignorasse o que estes urbanos progressistas repudiam.
A propósito, preparo-me para brevemente desmontar aqui, argumentando com provas copiosas da competência cultural e linguística do bicho, um dos mais sonantes embustes no comentarismo na comunicação social portuguesa: Pedro Marques Lopes.
Fâmulo lombricóide de Jorge Nuno Pinto da Costa, amigo querido, tardio — Parabéns, pois, querido Pedro —, do prosador exímio Ferreira Fernandes, inquilino no colo de Fernanda Câncio, opinante global avençado pela Global Media Group, pelas Produções Fictícias e pela SIC, «ex-merceeiro, ex-cauteleiro, ex-gasolineiro, ex-bancário, ex-funcionário de telecomunicações, consultor, empresário, gestor, jurista, colunista, comentador, pai e tripeiro em regime de exclusividade», descodificando e trocando por miúdos conforme informação dispersa na internet, filho de Domingos Marques Lopes [antigo Secretário da Mesa da Assembleia Geral da SLN, antigo Presidente do Conselho de Administração da Sociedade Imobiliária da Fábrica do Gelo, SA, no universo de Oliveira e Costa/BPN, fundador e antigo accionista maioritário da rede de supermercados Inô, adquirida em 1993 pela Jerónimo Martins, antigo Presidente do Conselho de Administração da Casa da Sorte, etc.], dele diz o Eremita, 14.Out.2019, que «mais ou menos público é o desafogo financeiro da sua família.» E se é o doutor Vasco Barreto a dizê-lo, pouco espantará se o doutor Pedro Marques Lopes tiver gastado em 1999 a quantia de 436.450,00 euros numa moradia unifamiliar de 350 m2 na Quinta do Peru. É obra! Por estas e outras, espanta-me um pouco menos que um dos horrores que mais atormentam Pedro Marques Lopes na justiça — Eu tenho medo... —, a par das ofensas à presunção de inocência, da violação do segredo de justiça (praticada sempre pelo Ministério Público, jamais pelos advogados ou por outros sujeitos processuais) e da "delação premiada"**, é a ideia de algum dia vir a ser acolhida por cá a inversão do ónus da prova no enriquecimento sem causa. Sempre que lhe falam nisso vislumbra-se um cardo de fúria a emergir-lhe na careca. Ele lá saberá; mas calhando, eu é que estou alucinado.
Em tempo: leia-se, por favor, isto.
** Quando Margarida Balseiro Lopes, que Pedro Marques Lopes tanto gabou no Eixo do Mal e no DN a propósito do discurso da deputada e líder da JSD na Assembleia da República em 25 de Abril de 2018, veio propor a consagração jurídica da delação premiada, veja-se como PML logo reagiu.