quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

Morte tira-nódoas?

Sou dos que, nos decénios de 70, 80 e 90 do século passado seguíamos com emoção as transmissões dominicais na RTP das corridas de automóveis de Fórmula 1. Pelo que eu mais aguava, como qualquer espírito bondoso que se preze, eram as ultrapassagens, os encostos, os despistes e as broncas. E, claro, também tinha os meus preferidos: Carlos Reutman, Emerson Fittipaldi, Ronnie Peterson, Jochen Rindt, Niki Lauda, Jody Schekter, Gilles Villeneuve, Keke Rosberg, Alain Prost [quase toda a gente dizia Álan Prost com Álan paroxítono em vez de Alã agudo, coisa que me encanitava substancialmente], Michael Schumacher... E não, nunca gostei de Ayrton Senna e simpatizava menos ainda com Nelson Piquet; que se há-de fazer?, é das hormonas.
Os comentadores titulares eram Adriano Cerqueira [1938-2005], que sabia pouco, Hélder de Sousa, que sabia mais e José Pinto [1947-2018], que não sabia nada, mas quem sabia tudo, tratava os pilotos e os carros por tu, morava no mundo e falava alemão era Domingos Piedade que nasceu em 1944 e morreu, faz uma semana e meia, em 30 de Novembro de 2019, pessoa que muito admirava e fui admirando até admirar menos ao saber disto e ao saber disto.
Li o que disse a imprensa na morte de Domingos Piedade. Afigurando-se pacífico que ninguém esperaria, nem se justificariam, títulos como, sei lá, "Morreu um benfiquista vígaro", de resto soez, certo é que quem não saiba do falecido senão o que Diário de Notícias, Jornal de Notícias, i, Correio da Manhã, Jornal de Negócios, A Bola, Sol, Observador, Sábado e Visão [no caso desta, pela mão do editor Manuel Barros Moura, com uma ligeira e quase envergonhada nota menos radiosa: «... acabando por se ver envolvido em vários processos judiciais.»] escreveram agora sobre ele, há-de ter pensado que Portugal perdeu um santo. Mas quem deveras se alambazou na unção de DP foi a jornalista Rita Bertrand que assinou na Sábado de 05.Dez.2019 um obituário que mais parece memorando de beatificação. Desta vez os deuses deverão ter enlouquecido já que até o Correio da Manhã, que viceja no escândalo, deixou imaculada a biografia do morto.
É em tal contexto de consenso jornalístico acocorado que não posso deixar de aplaudir a jornalista Filipa Almeida Mendes que no Público de 01.Dez.2019 "Morreu um dos rostos da F1 em Portugal" — contou o que tinha de ser contado. Ninguém mais o fez.
Muito estranhamente, ou talvez não, o Expresso ignorou a morte de Domingos Piedade

Quem, como sempre, não ficou mudo foi o frenético professor Marcelo, ainda o cadáver estava morno. 
Surpreendente seria se não tivesse exarado qualquer coisa. Por isso é que me espanta muito, e mal compreendo, que nem um pio do presidente-arlequim tenha soado pela morte de figura tão unânime e universalmente apreciada como a de Mahfuzur Rahman Khan [19.Mai.1949-06.Dez.2019]. Incompreensível e inaceitável silêncio!
Pois bem, para vexame do inquilino de Belém, até o Correio da Manhã, tablóide proscrito pelas mentes asseadas [é por isso que também o assino], não deixou de dar, não obstante o erro duplicado na data de nascimento, devido e tempestivo destaque à morte do senhor Mahfuzur, perda irreparável para a humanidade.
Ora, como sabemos e convém não esquecer, o Bangladesh sempre que o dólar sobe.
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Já que estou com a mão na massa, pergunto se conhecem na língua portuguesa melhores obituários do que os urdidos pelo magnífico José Cutileiro. Eu não conheço.
Assim, por que esperam os prelos para parir ppppp uma colectânea das fantásticas peças literárias que JC vem publicando, "In Memoriam", no Expresso desde 2004?
Se temos crónicas em livro de José Tolentino Mendonça, se as temos de Pedro Mexia, de Clara Ferreira Alves, de José Gameiro, de Luís Pedro Nunes [com um dos títulos mais pretensiosos, pífios e desconchavados algum dia vistos, que apetece equiparar ao pernóstico "Joan Miró: Materialidade e Metamorfose" com que crismaram pomposamente por cá uma exposição de 80 e tal obras, que visitei, de qualidade e coerência muito discutíveis, do catalão de que só em Barcelona há 14 mil para ver..., e os pategos tugas vaidosíssimos de também termos mirós], todos colunistas do Expresso, por que quebranto, com tanta merda à venda nos escaparates deste país [12 mil títulos por ano], ainda não houve lugar para um livro de obituários — como este, por exemplo, sobre o mirabolante Scotty Bowers [1923-2019], no Expresso de 09.Nov.2019 — escolhidos entre os cerca de 800 que José Cutileiro redigiu até hoje? Escrita magistral, informação copiosa, ironia jorrante.
Que objecto mais guloso tal livro seria...