terça-feira, 19 de novembro de 2013

Gonçalo M. Tavares

faz-nos o grande e impagável favor de dizer.

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Tenho um fascínio pelo "e" e um grande desinteresse pelo "ou". […] Desvalorizo o "ou" porque remete para isto ou aquilo. Há um texto muito bonito de Kierkegaard que tem a ver com isso. Mas se escrevesse um livro semelhante, o título seria “e e e e”. Porque o que quero fazer como escritor é isto e aquilo e aqueloutro. […] No limite, o “ou” é de exclusão definitiva, remete para uma espécie de inimizade, para dois campos. O “e”, pelo contrário, remete para as ligações, o que me interessa muito mais. […] Tudo está ligado *.
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Com muitas excepções, é muito raro uma pessoa estar duas ou mesmo uma hora seguida concentrada num único objecto. […] Há obras de arte que só podem aparecer se uma pessoa estiver uma, duas, três, quatro, cinco horas em frente delas, sem mudar a sua atenção para outro lado. E este tempo prolongado com o mesmo objecto,  concentrado, é qualquer coisa que as tecnologias  e o mundo contemporâneo estão a perturbar.
[…]
a questão da cidade, tema absolutamente importante para mim. A cidade tem a ver com a tentativa de organizarmos e limitarmos a possibilidade de violência. Também o amor e o desejo. Pense-se numa paragem de metro. A carruagem pára e sai uma multidão. E é muito bonito ver a máquina da cidade a funcionar: saem mil pessoas da estação e começa logo a divisão, 500 para um lado, 500 para outro. E assim sucessivamente, 200 para aqui, outras para acolá. A lógica da cidade é que os mil vão-se dividindo até no final serem duas pessoas que entraram no Rossio e saíram no Lumiar. No limite uma delas vai para o segundo andar e outra para o prédio ao lado. A cidade é um tema que atravessa todos os autores, não é de engenharia, mas absolutamente literário e filosófico. […] As ligações evitam que uma pessoa chegue ao isolamento final da cidade e que de certa maneira não se atire do 8.º andar. Há uma frase do Novalis de que gosto: “Estamos sós com tudo aquilo que amamos”. A nossa solidão tem o tamanho das nossas ligações.
[…]
Gosto muito de pintura e uma das coisas que mais me fascinam é perceber que, nela, uma pessoa não entra na página um. A escrita é muito condicionante do olhar. […] O olhar é livre, não é domesticado pela leitura. […] gosto da ideia de o leitor entrar em qualquer página [do Atlas], sem perguntar o que estava a acontecer.
[…]
O mundo do pensamento e da leitura é um mundo de ligações, de diálogos e isso agrada-me. Há outra ideia muito clara: desde os filósofos da antiguidade clássica até ao Martim Amis ou Philip Roth, todos os autores, escritores e cientistas também estão a falar do mesmo, da morte, do medo e do desejo. E o mais surpreendente são as infinitas possibilidades, as variações. Daí que no Atlas tenha tentado colocar ao mesmo nível um verso e um texto do Walter Benjamin, uma frase da Clarice Lispector ou um verso da Sophia de Mello Breyner ou um texto do Vergílio Ferreira e do Wittgenstein. A poesia argumenta tão bem e convence sobre determinados temas como a Filosofia. […] Não separo entre as pessoas que andam à procura do belo e as que procuram o verdadeiro. As coisas estão misturadas.
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Tenho um pensamento espacial e sou sensível à ideia de que a escrita e o desenho são do mesmo mundo, o do traço. Até a Matemática. Escrevo e desenho com os mesmos traços. E com eles faço uma casa ou um sete.
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É a ideia de partir alguma coisa respeitosamente que me interessa. O que partimos ou fragmentamos é que permite a nossa acção. De outra forma o nosso martelo não acertava em nada.
[…]
interessa-me cada vez mais de que forma um texto pode ser todo ele imagem. Pura descrição, sem raciocínio. A racionalidade pode ser instintiva, por imagens. Mas espero ser um autor racional, sim. É indispensável fazer pensar, a literatura não é um passatempo. Desde o início que digo isto. Sei que pode não ser muito popular dizê-lo, mas a literatura é um espaço de uma certa dureza, que exige um certo esforço dos leitores. […] Acredito na escrita que dá prazer aos leitores, mas está ligada à reflexão, à imaginação, à criação de um mundo próprio. […] O leitor é um emissor. A partir da frase que lê vai criando imagens  que não estão no que lê, mas à volta. E isso é a imaginação. Uma das tarefas mais bonitas da leitura é baixar o olhar sobre o livro e levantar a cabeça. É aí que começam a aparecer dezenas de imagens.
[…]
A minha idade [Luanda, Agosto de 1970] começa a ser suficiente para ser sensato e tranquilo.»
Se o freguês deste blogue é dos que não passam sem dar presentes de Natal, e pode, este Atlas será o melhor deles. «Pode encomendá-lo aqui», citando a recomendação de bolo-rei afixada na Pastelaria Mena desde meados de Outubro, sim, que o Natal estava à porta. Pró réveillon é que ainda falta; pró carnaval é capaz de ser um bocado cedo mas o São Valentim, ai de mim, também vem aí.

E este presentinho, hã? Chiu.
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* ... de tal modo que Gonçalo M. Tavares usa 15 vezes, nas 4 páginas de conversa, a expressão «tem a ver com».