faz-nos
o grande e impagável favor de dizer.
«[…]
Tenho um fascínio pelo "e" e um grande
desinteresse pelo "ou". […] Desvalorizo o "ou" porque
remete para isto ou aquilo. Há um texto muito bonito de Kierkegaard que tem a
ver com isso. Mas se escrevesse um livro semelhante, o título seria “e e e e”.
Porque o que quero fazer como escritor é isto e aquilo e aqueloutro. […] No
limite, o “ou” é de exclusão definitiva, remete para uma espécie de inimizade,
para dois campos. O “e”, pelo contrário, remete para as ligações, o que me
interessa muito mais. […] Tudo está ligado *.
[…]
Com
muitas excepções, é muito raro uma pessoa estar duas ou mesmo uma hora seguida
concentrada num único objecto. […] Há obras de arte que só podem aparecer se
uma pessoa estiver uma, duas, três, quatro, cinco horas em frente delas, sem
mudar a sua atenção para outro lado. E este tempo prolongado com o mesmo
objecto, concentrado, é qualquer coisa
que as tecnologias e o mundo
contemporâneo estão a perturbar.
[…]
a questão da cidade, tema absolutamente importante
para mim. A cidade tem a ver com a tentativa de organizarmos e limitarmos a possibilidade
de violência. Também o amor e o desejo. Pense-se numa paragem de metro. A
carruagem pára e sai uma multidão. E é muito bonito ver a máquina da cidade a funcionar: saem mil pessoas da estação e
começa logo a divisão, 500 para um lado, 500 para outro. E assim sucessivamente,
200 para aqui, outras para acolá. A lógica da cidade é que os mil vão-se
dividindo até no final serem duas pessoas que entraram no Rossio e saíram no
Lumiar. No limite uma delas vai para o segundo andar e outra para o prédio ao
lado. A cidade é um tema que atravessa todos os autores, não é de engenharia,
mas absolutamente literário e filosófico. […] As ligações evitam que uma pessoa
chegue ao isolamento final da cidade e que de certa maneira não se atire do 8.º
andar. Há uma frase do Novalis de que gosto: “Estamos sós com tudo aquilo que
amamos”. A nossa solidão tem o tamanho das nossas ligações.
[…]
Gosto muito de pintura e uma das coisas que mais me
fascinam é perceber que, nela, uma pessoa não entra na página um. A escrita é
muito condicionante do olhar. […] O olhar é livre, não é domesticado pela
leitura. […] gosto da ideia de o leitor entrar em qualquer página [do Atlas],
sem perguntar o que estava a acontecer.
[…]
O mundo do pensamento e da leitura é um mundo de
ligações, de diálogos e isso agrada-me. Há outra ideia muito clara: desde os
filósofos da antiguidade clássica até ao Martim Amis ou Philip Roth, todos os
autores, escritores e cientistas também estão a falar do mesmo, da morte, do
medo e do desejo. E o mais surpreendente são as infinitas possibilidades, as
variações. Daí que no Atlas tenha
tentado colocar ao mesmo nível um verso e um texto do Walter Benjamin, uma
frase da Clarice Lispector ou um verso da Sophia de Mello Breyner ou um texto do
Vergílio Ferreira e do Wittgenstein. A poesia argumenta tão bem e convence sobre
determinados temas como a Filosofia. […] Não separo entre as pessoas que andam
à procura do belo e as que procuram o verdadeiro. As coisas estão misturadas.
[…]
Tenho um pensamento espacial e sou sensível à ideia de
que a escrita e o desenho são do mesmo mundo, o do traço. Até a Matemática.
Escrevo e desenho com os mesmos traços. E com eles faço uma casa ou um sete.
[…]
É a ideia de partir alguma coisa respeitosamente que
me interessa. O que partimos ou fragmentamos é que permite a nossa acção. De
outra forma o nosso martelo não acertava em nada.
[…]
interessa-me cada vez mais de que forma um texto pode
ser todo ele imagem. Pura descrição, sem raciocínio. A racionalidade pode ser
instintiva, por imagens. Mas espero ser um autor racional, sim. É indispensável
fazer pensar, a literatura não é um passatempo. Desde o início que digo isto.
Sei que pode não ser muito popular dizê-lo, mas a literatura é um espaço de uma
certa dureza, que exige um certo esforço dos leitores. […] Acredito na escrita
que dá prazer aos leitores, mas está ligada à reflexão, à imaginação, à criação
de um mundo próprio. […] O leitor é um emissor. A partir da frase que lê vai
criando imagens que não estão no que lê,
mas à volta. E isso é a imaginação. Uma das tarefas mais bonitas da leitura é
baixar o olhar sobre o livro e levantar a cabeça. É aí que começam a aparecer
dezenas de imagens.
[…]
A minha idade [Luanda, Agosto de 1970] começa a ser
suficiente para ser sensato e tranquilo.»
Entrevista – a melhor entrevista do ano – feita
por Luís Ricardo Duarte e Maria Leonor Nunes a Gonçalo M. Tavares, no JL
de 13.Nov.2013, a propósito da
publicação recente do fabuloso Atlas do Corpo e da Imaginação.
Se o
freguês deste blogue é dos que não passam sem dar presentes de Natal, e pode, este
Atlas será o melhor deles. «Pode encomendá-lo aqui», citando a recomendação de
bolo-rei afixada na Pastelaria Mena desde meados de Outubro, sim, que o Natal
estava à porta. Pró réveillon é que ainda falta; pró carnaval é capaz de ser um
bocado cedo mas o São Valentim, ai de mim, também vem aí.
E
este presentinho, hã? Chiu.________________________________
* ... de tal modo que Gonçalo M. Tavares usa 15 vezes, nas 4 páginas de conversa, a expressão «tem a ver com».