«As
comemorações dos quarenta anos do 25 de Abril, as oficiais e as não oficiais,
as da esquerda, as do centro e as da direita, são completamente inócuas,
politicamente anestesiadas, de um conformismo idiota que serve sem a mínima
reserva a reificação do passado. Por elas, não passa nem uma ligeira brisa de
pensamento. Tudo desertou, ficou apenas o palco vazio de uma ideia. Parecem directamente
inspiradas no modelo da Acção Paralela, esse comité de príncipes do espírito,
inventado por Robert Musil, em O Homem Sem Qualidades, que tinha a seu cargo a missão patriótica de celebrar os 70
anos do Imperador da Cacânia, isto é, do Império Austro-Húngaro.
[…]
Todos se
treinaram no exercício que consiste em fazer um uso público da História, mas
todos desconhecem a lição que torna o passado carregado de presente, isto é,
citável sem ser neutralizado e reificado. O significante vazio que mais recitam
é “democracia”, tornado religião civil à escala planetária. Uns falam de
democracia referindo-se a uma ordem jurídico-política; outros entendem-na no
plano da prática administrativa, gestionária. Uns e outros parecem incapazes de
interrogar tal conceito, de perceber a cisão que o habita e que o fez divergir
em duas direcções diferentes. Por isso, deixámos de saber a que ordem de
realidade política pertence a democracia. O que sabemos muito bem é que ela se
tornou um mero dispositivo do discurso dos políticos. Ao ponto de poder ser
entendida, hoje, como a religião dos governantes abandonada pela falta de fé
dos governados.
[…]
A grande missão
patriótica da nossa Acção Paralela nem precisa de se esforçar para encontrar a
palavra de ordem que mais lhe convém, a verdade mais cristalina da ideia e do
fundamento que buscava para comemorar. Essa palavra de ordem foi-lhe oferecida
por uma alta representante da Nação, paralela em todas as acções e em todas as
palavras que diz ou não diz, e resume-se a uma tirada que deve ser elevada a
digno emblema das comemorações: “Isso não existe!”.»