quarta-feira, 8 de abril de 2015

Se António Guerreiro não é o melhor, quem é o melhor?


Todos os artigos, inteiros, de António Guerreiro, no Público/Ípsilon
de 08.Ago.2014 a 03.Abr.2015
08.Ago.2014
. O banco secularizado | BES/Novo Banco. «Estávamos nós cheios de fé na História, que é a última religião dos doutos, a assistir, pela televisão e em directo, ao processo de secularização do Banco Espírito Santo, quando começámos a perceber que a boa nova a anunciar um banco bom e novo (termos muito simples e claros, como podemos ver, pois a linguagem secularizada renuncia a toda a obscuridade) era ainda demasiado permeável a um ordenamento divino do mundo — na sua versão maniqueísta, que opera uma nítida separação entre bons e maus — e a uma concepção cultual do capitalismo financeiro.»
. Versos de puro nada | Recensão de "", livro de poesia de Daniel Jonas. «podemos dizer que estes sonetos de Daniel Jonas nos libertam e nos deslocam para paragens bem distantes daquelas em que grande parte da poesia portuguesa contemporânea nos instala.»

15.Ago.2014
. Turistas, mas relutantes | O turista de Lisboa. «cada turista é, para o seu semelhante, um espelho onde este vê reflectida a sua imagem de pessoa caricata, infantil, gregária, rendida a uma alegria imbecil, parodiante de uma mobilização geral.»

22.Ago.2014
. O povo da televisão | «aqueles programas, reportagens e concursos frequentados por pessoas que são submetidas à deformação pelos próprios apresentadores, repórteres e 'entertainers' para satisfazer os ditames televisivos do expressionismo grotesco.»

29.Ago.2014
. Treblinka é já ali | Maus tratos a animais de companhia [Lei n.º 69/2014, de 29 de Agosto] e a invocação do humanismo como legitimação da lei.

05.Set.2014
. E agora? Lembra-me. | O filme de Joaquim Pinto: poesia, mística da imanência, quotidiano.

12.Set.2014
. Sua Majestade, o Cinema | "Os Maias", filme de João Botelho.
. Os novos teólogos | O liberal João Carlos Espada e «as exigências medíocres de uma pequena burguesia intelectual.»

19.Set.2014
. Pedofilia e pedofobia | «será possível falar da pedofilia, como uma questão de enorme complexidade, sem nos limitarmos a proferir interjeições de horror? Tentemos.»

26.Set.2014
. A cidade e o campo | Sobre "Ouro e cinza", de Paulo Varela Gomes. «o campo é hoje, em larga medida, uma produção da Mota-Engil para a RTP, SIC e TVI.»

03.Out.2014
. O Pedro Manuel | Pedro Passos Coelho, «o triste produto do tempo do homem-massa e o engendramento catastrófico do fim de todos os encantamentos políticos, ideológicos e sociais.»
. Ler o que nunca foi escrito | Recensão de "Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas", obra póstuma, inacabada, de José Saramago. Manuel Alberto Valente, o editor [o mesmo do último Herberto Helder], apanhado em falso.

10.Out.2014
. O ruído que vem dos livros | Ainda "Alabardas, alabardas, Espingardas, espingardas". Porrada no editor. Veremos que chico-espertices industriais vai a Porto Editora perpetrar com o autor morto depois da patifaria que lhe fez com os últimos livros em vida.
. Retrato do cineasta enquanto escritor | Recensão de "Obra escrita", de João César Monteiro, editada por Vitor Silva Tavares.
«— Beijou os rotundos amareliflões melões melicheirões do seu rabicundo, cada um dos rotundos e melonosos hemisférios, no seu rego amareliflão, com uma obscura prolongada provocante melomelidorante osculação.
— Sinais visíveis de post-satisfação?
— Uma contemplação silenciosa; uma ocultação errática; uma degradação gradual; uma repulsão atenta; uma erecção próxima”.
[…]
Ao sr Vasconcelos [António-Pedro Vasconcelos] foram deixadas todas as indicações julgadas úteis para a boa execução do plano, tarefa de que ele se encarregou escrupulosamente, segundo creio, e pela qual lhe estou muito grato. Bem feia acção seria, pois, eu vir agora queixar-me do trabalho generosamente despendido por um colega em proveito de um filme meu, mas lá que o enquadramento é uma boa merda, isso é.»

17.Out.2014
. Homens e animais | Diferendo e litígio, a propósito do abate em Espanha de um cão chamado Excalibur.

24.Out.2014
. A pilhagem fiscal | «um Estado que perdeu a vergonha de se apresentar como agente supremo de uma pilhagem legal.»

31.Out.2014
. As metamorfoses do poder | Recensão de "Massa e Poder", de Elias Canetti, «um dos mais grandiosos ensaios do século XX. […] todas as distâncias e protecções que os homens criaram por se sentirem ameaçados pelos outros e pelo desconhecido são ditadas pelo medo de serem tocados.»
. A ecologia literária | Os 100 000 euros do Prémio Leya e a nova literatura mundial.

07.Nov.2014
. O destino do partido | A natureza dos partidos políticos.

14.Nov.2014
. O escritor e o seu duplo | A paródia e a manha de António Lobo Antunes nas entrevistas, designadamente na que deu a Isabel Lucas no Público/Ípsilon de 07.Nov.2014.

21.Nov.2014
. Letrados e reaccionários | «O reaccionário letrado (do tipo Paulo Varela Gomes) e o letrado reaccionário (do tipo José Pacheco Pereira) […] podem respeitar-se mutuamente mas não pertencem à mesma confraria.»

28.Nov.2014
. Sade, esse sublime energúmeno | «Duzentos anos após a sua morte, Sade continua a visitar-nos como um fantasma que não se extingue, desafiando o nosso tempo com os seus textos, tão difíceis de olhar de frente, em que se faz a apologia do prazer e do vício contra a lei e a ordem.»
. Virar as costas ao presente | «interessante questão formulada por José Pacheco Pereira: uma vez que durante a nossa vida não temos tempo para ler as grandes obras do passado, valerá então a pena ler livros novos?»

05.Dez.2014
. Uma história de fantasmas | sobre o filme "Cavalo Dinheiro", de Pedro Costa. Rememorar.
. A alta tensão timótica | «Muitas vezes, apetece reclamar que se faça tábua rasa, que venha um esquecimento libertador que permita começar tudo de novo. Por exemplo: que nos seja concedida a felicidade suprema de uma profunda amnésia apagar o nome de José Sócrates da cabeça dos seus amigos e dos seus inimigos e passar a residir apenas nos arquivos.»

12.Dez.2014
. Uma paisagem desencantada | Balanço de 2014. «É no ensaísmo e no vasto campo das ciências humanas e sociais que a actual lógica editorial mais danos provocou, limitando assim o debate e a livre circulação de ideias. […] A apresentação desta lista exige um preâmbulo: ela abrange não apenas o ensaio propriamente dito (que, como sabemos sempre se interrogou a si mesmo enquanto género e forma), mas o campo mais vasto dos livros de ciências humanas e sociais, incluindo a filosofia, a estética, a crítica literária e artística. [...]
Por isso, só poderia resultar num conjunto muito ecléctico, à medida das diferentes proveniências disciplinares das pessoas que para ele contribuíram. Se o saber é sempre polémico, um balanço anual que pretende totalizar um tão vasto campo de saberes é, inevitavelmente, um campo de batalha.
»
[Inclui escolhas – ensaio, poesia, ficção – de António Araújo, António Guerreiro, Diogo Ramada Curto, Gustavo Rubim, Hugo Pinto Santos, Helena Vasconcelos, Isabel Coutinho, Isabel Lucas, José Riço Direitinho, Luís Miguel Queirós, Maria Conceição Caleiro, Nuno Crespo e Rui Lagartinho.]
. Palavras que libertam e atraiçoam | Sexo, género, feminino, masculino. «outro termo que tem sido sujeito a um uso inflacionado, e por isso nefasto, é “homofobia”. A palavra “fobia” tem um sentido preciso, muito forte, e convinha não a banalizar.»

19.Dez.2014
. Os nossos queridos Bouvard e Pécuchet | Ricardo Salgado e José Maria Ricciardi na comissão de inquérito ao BES. «Queríamos escutar as narrações e os argumentos dos dois homens ricos, sumptuosamente ricos, e o que ouvimos foi uns pobres homens: um podia chamar-se Bouvard e o outro Pécuchet. E, tal como os dois homenzinhos de Flaubert, estes também foram vítimas de um espírito enciclopédico e coleccionador, mas de um novo tipo: coleccionaram palavras do jargão financeiro, construíram com elas um sistema que ruiu por todos os lados, mas continuam a debitá-las de maneira incontinente, a mostrar que não conhecem outras.»

26.Dez.2014
. Miguel, porque escreves? | Escritor, escrevente. «Por uma entrevista a Miguel Sousa Tavares, na SIC, feita por Raquel Marinho (e publicada também no site do Expresso com o título: “Porque escreves, Miguel?”), fiquei a saber que o seu último livro começava com uma resposta a esta questão. […] o Miguel, que nestas coisas da literatura é tão ingénuo, nunca perceberá porque é que quanto mais se reivindica como escritor (oportunidades não lhe faltam) mais se enterra como um banal escrevente.»

02.Jan.2015
. O corsário, o profeta, o apocalíptico | Sobre "Pasolini", filme de Abel Ferrara.
. Muito orgulho gay e algum preconceito | «um banqueiro que assume a sua homossexualidade ao mais alto nível é visto como um exemplo. Mas exemplo de quê e para quem? Para quem aspira chegar a banqueiro, para quem deseja mas não ousou assumir a sua homossexualidade, ou para quem acha que não se importaria nada de dizer ao mundo que é homossexual se um dia chegasse a banqueiro, em Londres? Um operário da construção civil que fizesse, na sua aldeia, perante os seus conterrâneos, exactamente o mesmo que fez o banqueiro António Simões, seria sempre um exemplo de muito maior coragem e aquele que importaria de facto mostrar.»

09.Jan.2015
. Sexualidade e política | Ainda a distinção ao banqueiro larilas. «Seja-me permitido retomar e desenvolver o assunto. […] As cerimónias e opções em que a maior parte do activismo gay e lésbico se compraz estão fixadas nas convenções da identidade e do reconhecimento. Daí a glorificação do coming out, como se a liberdade de não declarar publicamente não fosse tão legítima e eventualmente tão portadora de um potencial crítico como a de declarar. […] o discurso e as escolhas de instituições como a ILGA não só nada produzem de relevante no plano político e cultural como se conformaram a um kitsch ideológico cujo brilho resplandece com mais força nos momento de gala.»

16.Jan.2015
. As imposturas da avaliação | «A grande impostura da avaliação enquanto prática e doutrina não está apenas instalada na universidade e na investigação, estendeu-se nos últimos anos a todos os domínios de actividade profissional e a todos os sectores da sociedade. […] A avaliação tem uma natureza e uma função essencialmente estratégicas: nas empresas, está ao serviço da gestão e da disciplina dos “recursos humanos”; na universidade e na investigação, é o “dispositivo” de uma máquina de governo.»

23.Jan.2015
. Se isto é Celan… | Recensão de "Não Sabemos mesmo O Que Importa — Cem Poemas", de Paul Celan. «era com regozijo e expectativa que se esperava a tradução de cem poemas de Celan por Gilda Lopes Encarnação, que tinha feito, entre outras, uma excelente tradução de "A Montanha Mágica" (D. Quixote). Mas o resultado que nos oferece "Não Sabemos Mesmo O Que Importa" (assim se chama a antologia) não é nada satisfatório.»
. Civilização e barbárie | «Tal oposição, hoje tão proclamada, corresponde a uma visão idealista e cumulativa da “história do espírito”, à maneira de Hegel. Mesmo quem, noutras circunstâncias, não quer ouvir falar de dialéctica, surge agora completamente rendido ao processo dialéctico e ao evolucionismo na história das ideias: é isto que significa a afirmação muito comum de que a barbárie — aquela com que fomos recentemente confrontadosé o resultado de duas faltas: a da secularização e a dos valores do Iluminismo (a crítica, a razão, o progresso, a universalidade, o cosmopolitismo). Ora, o que esta maneira de pensar desconhece é precisamente aquilo que o historiador da arte e da cultura Aby Warburg (1866-1929) designou como uma fundamental esquizofrenia: a civilização está continuamente em luta contra o seu pólo demónico (traduza-se assim, e não como “demoníaco”, o dämonisch), num conflito trans-histórico, tipológico.»

30.Jan.2015
. Populismo e demofobia | «Quem, no domingo passado, à noite, seguiu a contagem dos votos, na Grécia, através dos vários canais portugueses de televisão, terá sentido uma enorme impaciência perante as milícias civis de comentadores e “politólogos”, que parecem personagens decalcadas dos aforismos satíricos de Karl Kraus contra os jornalistas do seu tempo: dizem e “comentam” porque não têm nada a dizer, e têm algo a dizer porque a sua tarefa é comentar. No meio de tanta indigência, lá apareceu, brandido por alguns, o fantasma do populismo, seja ele efectivamente encarnado ou tenha a condição de espectro. Estas almas penadas - para continuarmos no mesmo plano semântico - parecem não ter ainda percebido que não têm ao seu dispor nenhuma figura do povo para poderem agitar a bandeira do populismo, que o povo como sujeito político, tal como o conhecemos a partir da modernidade, desapareceu; […] Os actuais denunciadores do populismo, incapazes de entender a política como algo mais do que gestão e método, táctica e estratégia, vêem outra coisa: vêem um papão, sob a forma do povo que já não existe. Lutam contra fantasmas. Eles próprios são mortos-vivos, zombies do comentário e da “politologia” do pequeno ecrã.»

06.Fev.2015
. Eduardo Lourenço, cena primitiva | Recensão de "Obras Completas II – Sentido e Forma da Poesia Neo-Realista e Outros Ensaios". «Este volume é uma peça importantíssima na bibliografia sobre o neo-realismo, mas também importante para acedermos a um momento fundamental do percurso intelectual de Eduardo Lourenço, para chegarmos, digamos assim, à sua “cena primitiva”.»
. O examinador foi ao exame | Prova de Avaliação de Conhecimentos e Capacidades (PACC). «a crueldade provoca, mas a estupidez desmoraliza. […] O que vemos neste tipo de provas é, mais uma vez, a falácia da máquina da avaliação: ela presume uma cientificidade que de modo nenhum consegue demonstrar que possui.»

13.Fev.2015
. A Grécia como paradigma | «A Grécia é hoje um caso limite de experimentação biopolítica, um país inteiro tornou-se uma forma derivada dos campos, um lugar habitado não já por um povo ou por uma sociedade histórica, mas por uma mera população supérflua. Desapossados de toda a soberania e coagidos a erradicar a política como instância de mediação entre a economia e o social, os gregos estão reduzidos a um projecto de experimentação dos princípios económicos de um biopoder que delimita e designa populações – e segmentos de populações – suspeitas, inúteis e supérfluas.»

20.Fev.2015
. A eloquência patética do presidente | Cavaco Silva. «Quando o Presidente da República, interpelado pelos jornalistas, fala para os microfones e para as câmaras de televisão, é difícil tomar atenção às suas palavras – seja para louvá-las, seja para criticá-las – porque a elas se sobrepõe de maneira enfática o medium corpóreo não verbal: os traços móveis do rosto, o movimento da boca, os lábios encrespados, a disposição do corpo. O significado das suas palavras dissolve-se na mímica facial intensificada e nos aspectos prosódicos do seu discurso (a entoação, o ritmo, os picos de intensidade, etc.) Mas não se trata da gestualidade retórica dos políticos, um dos elementos que lhes conferem aquele quid a que Max Weber chamou carisma. Não, não é gestualidade retórica: é eloquência patética. […] patética porque se manifesta como um espasmo de exteriorização de uma causa interior. Dir-se-ia, na sua mímica intensificada, que ele não é patrão dos seus gestos, do seu olhar, da sua expressão. E, por isso, torna-se transparente, não consegue travar o mau-humor nem controlar os arrebatamentos de homem severo, não consegue mascarar as suas paixões nem desmentir o coração. […] ele fala, mas nós já só conseguimos vê-lo.»

27.Fev.2015
. Só, como Franz Kafka | «A edição dos Diários de Kafka, pela Relógio D’Água, traduzidos com enorme competência por Isabel Castro Silva, é um acontecimento editorial que tem de ser salientado. […] O mistério chamado Kafka está coberto pela película espessa de uma vida banal. […] uma existência marcada por um grandioso falhanço em todos os combates a que se viu obrigado: com o pai (cuja autoridade o assustava tanto que nem sequer era capaz de permanecer em pé diante dele), com a literatura (não acabou nenhum dos seus romances), com o mundo das mulheres.»
. O bom aluno | «O bom aluno é aquele que interiorizou plenamente a moral da culpa e sabe que deve comportar-se como um ser em débito. Haverá algum momento em que a culpa vai ser expiada, isto é, em que o débito vai ser saldado? Evidentemente que não. Por isso é que se criou a figura da “dívida eterna” ou infinita. […] Para se tornar um bom aluno, como lhe é exigido para continuar a dar-lhe crédito, a Grécia não precisa de pagar a sua dívida — que é infinita e eterna. Tem é de dar como garantia do fictício e sempre diferido reembolso um conjunto de virtudes sociais e políticas que são a carne e o sangue da moralidade a que está obrigada. Tem de sujeitar-se eternamente ao performativo da promessa. Não é que as promessas paguem dívidas, mas são um reconhecimentos e uma ritualização da culpa.»

06.Mar.2015
. O poeta sem biografia | «Fernando Echevarría, na semana passada distinguido com o prémio Casino da Póvoa, anunciado e entregue na 16ª edição do festival Correntes d’Escritas, é o autor de uma obra poética grandiosa, que sempre permaneceu impermeável às determinações prosaicas da chamada “vida literária”. […] A obra de Fernando Echevarría, construída de maneira silenciosa, parece um objecto arquitectónico de grande envergadura, em que nada escapa a uma geometria rigorosa e ao primado da dimensão intelectual. […] Pertence nitidamente a uma categoria de poetas que tudo fazem para expulsar a dimensão biográfica, de maneira a que na obra sobressaia uma aguda consciência do acto de escrever e não aquilo que é anterior e exterior a ele.»
. A elite consensual | «Parece um título anódino, mas quando analisado pelo lado de uma psicologia racional e de um realismo político, ambos respeitosos dos grandes equilíbrios, verificamos que é de uma grande envergadura. "Nem mais alemães que os alemães, nem mais gregos que os gregos": eis o título da crónica da semana passada de Francisco Assis, eurodeputado do PS que escreve neste jornal todas as quintas-feiras. […] A encenação de debate cria a aparência de que uns e outros pensam de maneira diferente, mas toda a diferença se anula na mesmidade que brota da linguagem comum do “Nem-Nem”. Como se todos eles, festivos como os saltimbancos e nómadas como os cibernautas, se preparassem diante de um espelho deformador, antes de debitar opinião e analisar a temperatura exterior do ambiente: “Diz-me, espelho meu! Estou em forma? Estou conforme?” […] Empossados como fabricantes de opinião para consumo da população genérica, quanto mais “Nem-Nem” são, mais hipóteses têm de ser aclamados como objectivos e responsáveis. […] Esta elite consensual, resultante de um agregado onde se instalou a maquinaria infernal de produção do “homem médio” ou homo mediocris, reivindica-se como uma maioria moral, na medida em que exerce uma hegemonia da opinião. […] a regra mais importante da elite consensual: nunca oferecer qualquer resistência ao presente.»

13.Mar.2015
. O otium e o lazer | «O tempo do lazer é aquele que resta depois do trabalho, vulgarmente chamado “tempo livre”, o que indica que ele se define não em si mesmo, mas em relação ao tempo de trabalho. Diferente do lazer é o ócio (no sentido do otium latino, não no sentido pejorativo que a palavra adquiriu). É do otium que nascem as artes, as letras e as ciências. O lazer é um tempo de recuperação e de preparação para o trabalho; o otium é o tempo da liberdade e não se deixa apropriar pela lógica mercantil dos tempos livres […] O sobressalário não está dependente da lei do mercado, da oferta e da procura. Trata-se de um salário arbitrário, isto é, dependente de uma arbitragem e de um preço políticos, e não do mercado. Um exemplo: o Lloyds Bank paga mais de uma dezena de milhões de libras, só em prémios e suplementos, ao seu CEO Horta Osório, como ficámos há dias a saber, não porque ele seja o único no mundo a conseguir a performance desejada (que, aliás, depende de uma equipa numerosíssima e não de uma só pessoa), mas porque convém ao Lloyds a operação publicitária que consiste em dizer ao mundo que tem a chefiá-lo um homem superpoderoso, e a medida do seu superpoder é evidentemente aferida pelo dinheiro que ganha. Esta burguesia do sobressalário raramente tem a possibilidade de converter o seu dinheiro em tempo. […] só o otium concede tempo e disposição para ler Guerra e Paz. O lazer, na melhor das hipóteses, satisfaz-se com um item do top Fnac ou com os roteiros da “cultura para o fim-de-semana”.»
Como diria Ana Lourenço: «Vamos fazer agora uma pequena pausa para intervaloEu espero por si.»

20.Mar.2015
. A política virtuosa | «Com a solicitude esclarecida do bom pastor que sabe por onde deve conduzir o rebanho, Francisco Assis, na sua crónica da passada semana ["A difícil moderação", Público, 12.Mar.2015], pôs-me à distância da sua “difícil moderação” e empurrou-me para o lado dos extremismos. […] Eu tinha cometido a indelicadeza de o classificar como representante de uma elite consensual que exibe as virtudes da moderação centrista, mas o centro a que me referia podia não coincidir com o centro ideológico. […] este editorialismo ideológico e generalizado intoxica o ambiente, corrompe a linguagem, asfixia o pensamento e arruína o espaço público. É este contexto que permite a Francisco Assis reclamar como um gesto de coragem e de grande ousadia a sua “difícil moderação”. […] Celebremos a prova de resistência e de luta esforçada pela moderação salvífica, na batalha de Assis da penúltima quinta-feira, em nome de uma coisa que nos esmaga, de tal modo representa o todo da política virtuosa: a “civilização democrática e liberal”. Assim lhe chama Francisco Assis, funcionário político, obreiro intelectual e seu guarda avançado. Esta densa e eloquente elaboração do pensamento político, a que Karl Kraus chamaria “fraseologia”, é uma manifestação gritante do idioma mediático-político, irredutivelmente “nem-nem”. Nem isto nem aquilo, ele é pura tagarelice, uma palavra vazia, insignificante.»

27.Mar.2015
. Ah, a poesia! | «A ampliação, de ano para ano, das manifestações públicas para festejar o Dia Mundial da Poesia é um sintoma (atenção: um sintoma, não uma causa) de que se chegou a um ponto crítico da delapidação da poesia, não sob a forma da violência exercida por um inimigo exterior, bem identificado, mas sob a forma do desastre sereno vindo de tantos lados e impossível de localizar com precisão: é como o tempo que faz, o tempo meteorológico. Estas bem-intencionadas manifestações em sua honra são de facto um sintoma de que a poesia caminha para a museificação, mas perdeu efectualidade social e já nada conta na economia do livro. A esta contingência respondem alguns poetas mais foliões fazendo de jograis intermitentes no palácio quando chega a Primavera.»

03.Abr.2015
. A grande fadiga europeia | Recensão de "Submissão", romance de Michel Houellebecq. França, ano de 2022. «O presidente muçulmano chega serenamente ao topo do poder político em França, à margem das lutas entre o “movimento identitário” e os islamitas radicais. […] por todo o lado são bem visíveis os signos da conversão a uma nova ordem. Por exemplo, as mulheres, antes tão emancipadas e até libertinas, começam a cobrir a cabeça com um véu. Fazem-no porque o novo regime as obriga? Não, fazem-no voluntariamente, escolhendo alegremente a submissão em vez da crítica e da resistência. São os mecanismos da submissão generalizada que Houellebecq transforma em fábula política.»
. A desfiguração do rosto | «Ainda o coro ia no adro e já estava a ser exibida na última edição da revista do Expresso uma iconografia do escritor [Herberto Helder] que sempre tinha dito “não” a álbuns de família e outros bibelots, e que um dia escreveu: “Não me vou deixar apanhar por tentações biográficas.” […] o tempo e a força da sua obra irão novamente fazer desaparecer o rosto, mas por agora o efeito é o de uma desfiguração. […] Porque Herberto sempre esteve do lado da neutralidade da imagem do escritor perante a sua obra, reduzindo-o ao anonimato, o álbum de fotografias de Alfredo Cunha tem o efeito terrível de o fazer aparecer na condição de apóstata. Um fotógrafo à altura da difícil missão poderia ter feito o seu trabalho sem que se quebrasse o pacto que o poeta tinha estabelecido com a esfera pública. Mas as fotos não passam da mais banal reportagem, iconografia lisa e estereotipada de escritor com estantes de livros atrás. Nelas, não se adivinha nenhuma espessura, nada que indicie a presença de Herberto Helder, por mais que nos digam que é dele a figura que elas representam. […] é sempre obsceno, e ninguém deveria ser autorizado a tal, abrir as portas da intimidade num jornal. Tratando-se de Herberto Helder, que levou a vida inteira a fechar todas as portas, não é apenas obsceno, é uma violência.»