«[...] Roubei um carro e fui preso. Tive que fazer umas asneiras para conseguir sair da Marinha. [...] Entrei no mundo da prostituição. [...]»
Torre Bela, 24. Abr.1975
«Camaradas, isto vocês não fizeram só para terem trabalho. Vocês fizeram-no para ter a terra, porque são vocês que a vão trabalhar. Vêm talvez oferecer-vos hoje um bife da propriedade. Eu não me satisfaria com um bife porque o povo trabalhador não se pode satisfazer com isso. Nós achamos que é pouco e vocês não devem arredar pé disto porque um bife é pouco mas se aqui se fizer uma cooperativa numa parte desta terra é preciso que esse latifundiário que está aí, que tem aqui casas vazias para passar o fim-de-semana para as caçadas e para os amigos dele. Exploraram este povo durante anos e anos, os vossos pais, os vosso avós.
Com muita serenidade, mas nós temos é estar conscientes dos nossos direitos e daquilo que queremos, mas com serenidade. Quando eu vos digo, mas se vier para aqui um contrato de trabalho para uns quantos trabalhadores como início para uma cooperativa vocês não devem ficar por aí. Este indivíduo que está aqui não pode ficar com o resto da propriedade. Não há direito — e é outro problema que vocês têm de pôr, se não o puserem agora têm de o pôr no futuro, têm de pensar nele —, não há direito de que existam aqui imóveis vazios quando há necessidades aqui à volta nas aldeias. Vocês necessitam destes imóveis que estão aqui, necessitam ou não? Não é agora, já. Por agora é um pedaço, mas não desarmar e continuar a luta para que este pedaço seja tudo aquilo que é vosso. Mas isto pode ser uma ponta, tem que vir o resto. Quando, nós não sabemos mas se ficarem decididos e unidos o resto virá.»
Wilson Filipe:
«Obrigado, Mortágua.»*
Como isto anda tudo ligado, não havia o partido das filhas de Mortágua de dar notícia da morte de Wilson? Eis:
«Wilson foi uma das figuras ligadas à ocupação da Herdade da Torre Bela, em 1975. Participou no documentário de 1977 de Thomas Harlan sobre a mesma ocupação e no filme “Linha Vermelha” de José Filipe Costa. [...] De acordo com a agência Lusa, Wilson Filipe faleceu a 24 de Dezembro e as cerimónias fúnebres deverão ter lugar a 28 ou 29 de Dezembro.
A Herdade da Torre Bela foi ocupada a 23 de abril de 1975 por vários trabalhadores da Azambuja, numa ocupação que ocorreu sem intervenção partidária** e que deu origem a uma cooperativa popular. [...]»
Torre Bela, 26. Abr.1975
WF- Qual é o valor da tua farramenta? Qual é o valor da tua farramenta??!! ...Tudo isto é da cooperativa. ... Dás-me licença? Isto tem o valor de 100 escudos. ... Isto já não é teu. Isto é meu, é deste, é de todo o mundo!
CCV- Pode ser muito bem, mas eu é que trabalho com ela ... Tenho de ir comprar outra e depois essa outra fica a ser da comparativa e depois eu vou comprar outra e é sempre da comparativa, pá!?... Daqui a nada também o que eu visto, o que eu calço é da comparativa. Mas se fui eu que comprei! ...
WF- É isso mesmo! É essa a nossa finalidade.
CCV- Amanhã tiram-me as botas e fica da comparativa, fica a ser da comparativa, fica a ser da comparativa e eu fico nu.
WF- É essa a nossa finalidade. ... Tu não ficas nu, tu ficas com mais roupa do que a que tens!!!
CCV- Não vejo isso, não vejo nada disso. ... Eu cada vez vejo mais, cada vez vejo mais.
WF- Tu és louco. ...
CCV- Só quem não vê é os cegos, quem não vê é aqueles que morreram e os que estão ainda para nascer, esses é que ainda não viram. Vêm para ver.
...
WF- Tu no fundo hoje não compreendes nada, não sei porquê. Porque tu efectivamente, vou-te dizer mais uma vez ... Todavia lembra-te, ... esta farramenta que tu dizes que é tua hoje passa a pertencer da [sic] cooperativa e só assim é que isto vai para a frente.
«No dia 1 de Dezembro de 1975 — 219 dias depois da ocupação das terras — a "Comuna popular de Torre Bela" foi ocupada por militares agindo por ordem do governo socialista. A Comissão de Trabalhadores foi detida. Os oficiais da polícia militar compareceram em conselho de guerra e a produção parou. A Revolução dos cravos chegava ao seu termo.
Em 1982, D. Diogo, duque de Bragança, e seus irmãos recuperaram a posse das suas terras e reconverteram os 22.331 hectares da herdade em reserva de caça***.»
Wilson Filipe, em "LX 70 - Lisboa, do sonho à realidade", de Joana Stichini Vilela, Pedro Fernandes e Mark Mrozowski, Dom Quixote, 2014:
«[...] Depois fui falar com o duque, um tipo arrogante, que me disse que não dava emprego às pessoas, mas que me dava a mim — e um cavalo e um jipe. Levantei-me e dei-lhe um peido nas trombas. [...]»
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«[...] desmascarado pela jornalista Alexandra Lucas Coelho. Eu dormia no quarto do duque. Era o único que tinha casa de banho privativa, confessou 32 anos depois o líder popular da ocupação, hoje vendedor de camiões. Wilson, ex-assaltante de bancos, antecipou-se aos agricultores nas noites passadas no palácio. O mesmo palácio que os agricultores tomaram. [...]»
"Quando os trabalhadores rurais ocuparam a Quinta ribatejana da Torre Bela" | O Mirante, 05.Set.2007
** Não? Jurem.