terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Visto no passaporte

À entrada do Outro Mundo o polícia do SEF lá do sítio recebe de asas postas, correcto e super-cortês, recém-chegados:
- Bem-vindo, Sr. José Branco! Pode mostrar-me a sua documentação, por favor?  
- Bem-vindo, Sr. Vicente da Silva! Pode mostrar-me a sua documentação, por favor?  
- Bem-vinda, Sra. Maria de Sousa! Pode mostrar-me a sua documentação, por favor? 
- Bem-vindo, Sr. Eduardo de Faria! Pode mostrar-me a sua documentação, por favor? 
- Welcome, Mr. David Cornwel!!! * Can you show me your papers, please?

Todos são encaminhados para uma espécie de salão nobre e servidos copiosamente de champanhe Taste of Diamonds, ovas de esturjão-beluga, trufas brancas de Alba, café Kopi Lwak e pires de tremoços Lupinus albus de Cantanhede.
Todos portadores de "visto" rubricado por Clara Ferreira Alves e certidões de com ela haverem privado em grau de intensidade mínimo exigível na zona mais fina do Outro Mundo.
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«[...] Bati com suavidade à porta, ele entreabriu, e pela fenda consegui dizer “sou jornalista, Expresso, venho para a entrevista”. O homem respondeu, agora não vou dar entrevista. Neste momento não. Insisti. Estava a ler e não ia interromper a leitura para falar comigo. Tudo dito com polidez glacial, naquele tom das classes educadas da Inglaterra. A fenda da porta alargou, ligeiramente. Conseguia agora ver a cara, fechada e sem um sorriso, com um sobrolho levantado. Percebido, lá se ia a oportunidade de falar com John le Carré. Perdido por cem perdido por mil, perguntei com insolência o que ele estava a ler que não podia ser interrompido. A porta abriu um pouco mais, deixando ver uma figura alta, com uma madeixa de cabelo de cor indefinida, louro branco, sobre a testa. Respondeu que era Flaubert, “Madame Bovary”. Aí eu não resisti e disse, adoro esse romance, já o li tantas vezes. E ele, eu também, quantas? Nove vezes. E dissemos os dois ao mesmo tempo, nove vezes. Nine times. Com esta declaração que parecia cronometrada, a porta abriu-se completamente. O escritor, admirado com a coincidência, continuou a falar de Flaubert, a atenção ao pormenor, discutimos ainda uma comparação com Tchekov, o modo como ambos conseguiam caracterizar uma personagem através do que a rodeava ou do estado da luz, ou das observações sobre a paisagem. E assim consegui a entrevista de David John Moore Cornwell. Aliás, John le Carré. [...]
Abriu o minibar e perguntou se queria um whisky, uma garrafinha anã. Bebemos os dois, cada um com a sua garrafinha, no quarto do Ritz, um quarto com duas camas. Nada de suítes presidenciais.
«[...]»

//
«[...]
E a petulante gabarolice oceânica, senhores?
Mário Soares, John le Carré, Hotel Ritz...
«O John le Carré abriu a  porta.
- ... O que é que está a ler?
Estou a ler a Madamme Bovary ...
Ah, a Madamme Bovary!, disse eu ... Eu já li esse livro nove vezes.
- ... pela nona vez.
Dissemos os dois ao mesmo tempo. A porta abre-se de par em par e ele olhou para mim e disse:
Oh! Do you want a drink?
Quer whiskie velho ou the bay whiskey? E sentou-se e esteve horas a falar comigo. Portanto, o Flaubert e a Madame Bovary ... eu acho que lhe fiz uma óptima entrevista.»
[...]»