quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Alberto Manguel no Expresso e em Lisboa

Alberto Manguel [AM] é bom? Talvez.
Alberto Manguel é muito bom? Sei cá.
Alberto Manguel é honesto? Desconfio.
E Madalena Alfaia [MA], que assina as traduções de Manguel para o Expresso, é boa? É.
Muito boa? Decerto.
E quanto a honestidade? Diga-mo no fim o paciente leitor.

Ao longo de 2020 o Expresso tem publicado na sua revista, E, crónicas e ensaios de Alberto Manguel, apresentado como «colaborador regular» do jornal. As principais línguas de escrita de AM são o inglês, o espanhol e o francês. Daí a tradução, invariavelmente assegurada por Madalena Alfaia.

Para não maçar, deter-me-ei em apenas três peças.
Deste artigo não haverá grande coisa a dizer, salvo o Expresso e Madalena Alfaia terem escondido do leitor que se trata de tradução do original "Reach Out and Touch (Somebody's Hand)", publicado no n.º 112 da revista canadiana GEIST / Primavera de 2019.
Ainda assim, não deixei de ficar estupefacto com a asneira grossa, num autor como Manguel — que a acutilante MA trasladou do original sem emenda —, de ter posto S. Tomé, no lugar de Maria Madalena, a protagonizar o celebérrimo momento bíblico do Noli me tangere. [João, 20: 16-18]
Gostei de descobrir, no rasto da crónica, que AM [Argentina, 1948] casou e vive com um psicólogo canadiano ricaço, Craig E. Stephenson [Canadá, 1955], depois de, de 1975 a 1986, ter sido casado com Pauline Ann Brewer com quem teve três filhos. O tempora, o mores!  
Aqui fia mais fino.
É certo que a tradutora MA cuida de informar que se trata de uma versão (?!) «publicada originalmente no La Nación», diário centenário, conservador, o de maior tiragem e circulação na Argentina. Confirmei: "La era de la venganza", 25.Jul.2020.
«Uma versão», mas que versão, senhores!
Quem pode não ficar espantado com o interesse e domínio caseiro do omnímodo argentino-canadiano-francês AM em torno do Portugalzinho confinado do Verão de 2020?
«[...] Como escreveu Pessoa nos seus ‘Mandamentos’, sê tolerante, porque não tens a certeza de nada. [...]
Recentemente, em entrevista ao “Público”, Pedro Mexia declarou: “Uma pessoa que leia a ficção da Flannery O’Connor e que abstraia dali uma mensagem racista é maluca da cabeça.” [...]
Aqueles “negros selvagens” constituem ainda a imagem percebida pela maioria dos nossos vizinhos, por tribunais de júri brancos pelo mundo fora, por agentes da polícia da América do Norte, por lobistas anti-imigração na Austrália, por cidadãos honestos da província em França, pelo homicida de Bruno Candé. [...]
tal como se podem vandalizar estátuas de figuras históricas controversas — nos Estados Unidos, os militares do Exército da Confederação; em Praga e Bengala, Winston Churchill; em Lisboa, o padre António Vieira. [...]»
Fora de tudo o que está no original do La Nación de um mês antes, já de si traduzido do inglês para espanhol, Alberto Manguel cita Pessoa, mas isso é o menos, Pessoa é do cânone; AM cita Pedro Mexia de uma entrevista no Público de dias antes; AM fala do assassínio de Bruno Candé, ocorrido 4 semanas antes da publicação no Expresso, num registo de quase "tu cá, tu lá" com o malogrado actor; o intelectual planetário AM, atentíssimo ao burgo lusitano, ele que mora no outro lado do Atlântico, conseguiu alinhar Lisboa na correnteza dos EUA, de Bengala e de Praga, a pretexto da vandalização, dois meses antes, da estátua do Padre António Vieira. De resto, apetece perguntar de onde MA trouxe para "A era da vingança" a parte que vai de «reescrevendo a história» até «estátuas erigidas».
Isto é que foi enxertar, hã, Madalena?! Neste ponto é deveras interessante saber que, por exemplo, só um exemplo, esta fotografia com Bruno Candé foi tirada pela corujinha Madalena Alfaia...*
Por fim — «O mote inscrito no brasão de armas do Chile é uma instrução clara para o suicídio coletivo: Por la razón o por la fuerza.» —, mal se perdoa que a meticulosíssima MA tenha feito AM asneirar no lema nacional da república chilena. Nem parece dela, Madalena.

Antes de abordar a terceira peça, onde tudo tresanda muito mais, é o momento de, do quarteirão de «Testemunhos sobre o meu trabalho editorial» no "Em destaque" da página profissional de MA, realçar os contributos de Alberto Manguel [quem houvera de ser?] e de Pedro Mexia [et pour cause].
Alberto Manguel turibulando MA:
«Writers are solitary birds that build their nests with whatever stuff they can find. But after the nest is built, these birds need wise owls to tell them what is missing, what twig is misplaced, where there's a gap that weakens the whole structure, how to make it hold in whatever critical winds might blow. For the past few years, Madalena Alfaia has been my owl. With keen eyes, impeccable taste, refined technical knowledge, and an overriding aesthetic sense, she has helped me present my books to my Portuguese readers.
Alberto Manguel (escritor)»

Pedro Mexia enaltecendo MA:
«Editar um livro não consiste apenas em apenas [sic] publicá-lo. É, antes disso, um trabalho de revisão, questionação, rasura, substituição. Tenho tido a sorte de publicar numa editora onde esse processo é fundamental. E de ter contado diversas vezes com a edição da Madalena Alfaia. Qualquer pessoa competente na matéria deve ter boas noções de ortografia e sintaxe, amplitude de vocabulário, atenção aos clichés e às repetições desnecessárias, e assim por diante; mas a Madalena, além dessas competências, tem outras a que sou muito sensível, porque invariavelmente melhoram os textos: o sentido da ironia e da eufonia, a capacidade de entender ou de esclarecer alusões a outros textos, o interesse por géneros 'menores' como a poesia e o teatro, e até o 'gosto' (não sabemos o que é o gosto, se nos perguntam, mas quando não nos perguntam, sabemos). Não sou juiz em causa própria, mas posso dizer isto dos meus livros: são melhores do que eram por terem sido bem editados. E vários deles devem muito à Madalena.
Pedro Mexia (escritor, editor e crítico literário)» 

Vamos lá:
Ao chamar a atenção para o texto de AM no Expresso de sexta-feira passada, escrevia ontem MA no seu LinkedIn: «Em defesa da blasfémia. Um ensaio exclusivo de Alberto Manguel», sufragando a classificação com que o semanário o apresenta.
Exclusivo?

Vejamos.

Choca-me a arte de AM em vir vendendo, vai para 15 anos, o mesmo guião em países diferentes, em datas diversas, limitando-se a adaptá-lo, talvez a pedir ou consentir que lho adaptem, ao atentado islâmico do momento e aos tiranos de turno.
Quanto à peça de 11.Dez.2020, a manobra no Expresso assume dimensão himalaica.
É preciso lata descomunal para informar que é um «exclusivo». Não se admite que o jornal e MA omitam de que fonte/data traduziram.
Mais espantoso, no entanto, são os nacos abundantes de elementos da história e da literatura portuguesas entretecidos com tal familiaridade e com tão especioso pormenor [Manguel sabe de Afonso V, ele sabe de multas estipuladas por D. Sebastião em 1571, ele sabe de Aníbal Cavaco Silva em 1992, ele sabe de Ary dos Santos e até de António José Forte, ele domina o Código Penal português...] que nem sedado ou seviciado me conseguirão persuadir de que são da lavra corrente do fabuloso escritor, bibliófilo, professor.
Assevero que vale a pena o cotejo das quatro versões do ensaio. Na do Expresso marquei todas as "portugalidades".

Você, meu caro leitor, que intui destas coisas?
Por mim, sinto que Madalena Alfaia deveria explicar-nos melhor, a nós que pagámos para ler um «exclusivo» de Manguel no Expresso, a real quota das suas intervenções editoriais, e agora traduzo eu Alberto Manguel:
* «[...] depois de o ninho estar construído, esses pássaros precisam de corujas sábias para lhes dizer o que falta, que galho está fora do lugar, onde é que há uma lacuna que debilita toda a estrutura, como fazê-la manter-se contra qualquer vento adversário. Nos últimos anos, Madalena Alfaia tem sido a minha coruja. [...]»
Nota-se.
Blasfemo consumado me confesso. 

Apontamento à margem.
Neste ensaio, em mais uma incúria pouco tolerável, MA põe na boca de AM: «O famoso décimo sutra do “Alcorão” (10:100) diz assim: Nenhuma alma pode ser crente com a permissão de Deus.»
Fez-me a voltar ao meu Alcorão e confirmar a passagem nas três versões anteriores do «exclusivo». É claro que teria de ser «sem a permissão». Não bastando, não é sutra mas sura e, já agora, género feminino, em português e em espanhol. Curiosamente, este sutra é disparate original do facundo Manguel, que vem do La Nación, resiste na Geist e só parcialmente é corrigido no El País. Como haveria de não escapar à diligente Alfaia? Por isso, «A famosa décima sura», se não se importam. 
Mas nada de trágico ou surpreendente; estou habituado à revisão desleixada do Expresso.

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«Alberto Manguel é um romancista de escassa importância e um ensaísta que satisfaz e conforta plenamente os amantes das fantasias humanistas e das utopias dos livros e da cultura. Mas a grande obra deste famoso leitor nómada, nascido na Argentina, naturalizado canadiano, para o qual a pátria é o lugar onde instala a sua biblioteca, não é constituída pelos livros que escreveu, mas pelo mito que conseguiu criar em torno da sua colecção de 40.000 volumes. Uma parte considerável da sua obra escrita serviu para produzir e alimentar esse mito triunfante. [...]
Se não fosse o mito, tão ao gosto dos poderes políticos e mediáticos que se querem dotar de capital simbólico, Alberto Manguel não estaria prestes a desempacotar a sua biblioteca, vinda de Montréal, para a instalar no Palacete dos Marqueses de Pombal, na Rua das Janelas Verdes, a mesma onde morou Madonna, graças a um acordo já assinado entre o proprietário dos livros e a Câmara Municipal de Lisboa. [...]»


Fernando Medina, socialista rutilante, edil de Lisboa, é, estamos fartos de saber, versado em pirotecnia. E a Tinta da China/Bárbara Bulhosa não dorme no serviço.