O JL desta quinzena [comprei e conservo todas as 1310 edições desde a primeira, de 03.Mar.1981; não tarda ponho-as à venda na OLX, ao desbarato, que o metabolismo claudica e o papel estiola] é integralmente dedicado a Eduardo Lourenço [S. Pedro de Rio Seco, 23.Mai.1923 - Lisboa, 01.Dez.2020].
Talvez questão de feitio, a unanimidade e, mas menos, o consenso põem-me geralmente — enfim, rendo-me sem esforço à constatação de que coisas como o ar respirável ou a água potável, os lençóis de flanela no Inverno, o extermínio preventivo do SARS-Cov-2 com sabão macaco ou a sublimidade das guitarradas de Yamandu Costa, não merecem grande discórdia — de pé atrás; enervam-me, eriçam-me a desconfiança, ateiam-me a reserva, escoram-me a prudência.
Em apenas duas(!) das 33 páginas de epicédio hemorrágico lourenciano no JL encontramos desvio do uníssono babado ou basbaque.
Na página do bonzo de Coimbra, ainda assim de raspão:
«[...] A terceira razão para o enigma do consenso é a mais decisiva, a sedução do consenso. De que Portugal e de que portugueses falava tão sedutora como convincentemente? EL não era dado a detalhes e especificações, mas é evidente que o Portugal de que ele falava era uma entidade muito seletiva. Os portugueses do bairro da Cova da Moura ou do Bairro da Jamaica não vivem no Portugal de EL nem são os portugueses imaginados por ele. Estes portugueses, aqui nascidos há duas ou mais gerações, não vivem no labirinto da saudade. Vivem no labirinto da opressão e do racismo. Têm talvez saudade das suas raízes muito longe destes bairros, raízes que nunca tiveram porque lhes foram violentamente arrancadas pelas vicissitudes da violência colonial. Acontece que o Portugal destes portugueses raramente tem voz para confrontar o ensaísta. Nem isso seria uma prioridade para eles, ocupados como estão em confrontar regularmente a brutalidade policial. [...]»
Mas sobremaneira na página de Eugénio Lisboa que nos sacode e desperta da densa glorificação envolvente:
«[...] Quando querem fazer dele o argonauta que “desvendou” Portugal e Pessoa aos portugueses, estão a assassinar os factos eruditos e a cometer uma clamorosa injustiça. Aqui, repito, o pecador não é o autor de O Labirinto da Saudade, mas sim os seus aduladores pouco informados ou muito esquecidos. Todo o excesso de admiração é sempre suspeito e revela, em geral, pouco senso crítico e péssimo conhecimento da obra idolatrada. André Gide, que era, além de notável ficcionista e diarista, um finíssimo crítico e ensaísta, raramente dado a desmedidos ditirambos, observava, judiciosamente, que, quando se tem pouca coisa a dizer de alguém ou de uma obra, até não calha mal berrar, e que o excesso é frequentemente uma marca de penúria, pois que a verdadeira abundância arrasta consigo uma espécie de ponderação. O excesso, além de normalmente implicar um défice de conhecimento, é, repito, perigoso. O poeta William Blake dizia que o caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Pode ser que sim: depende de que excesso se trata, porque o excesso de admiração pode levar ao palácio do erro e da injustiça.
PESSOA NÃO PRECISOU DE EL para ser descoberto, lido, estudado, promovido e traduzido. Dizer que Lourenço, por mais admirável que seja a sua sondagem pessoana, “desvendou” Pessoa aos Lusíadas, esquecendo o admirável trabalho de quem, de muito longe, o precedeu é cometer os pecados capitais de ou esquecimento, ou desatenção, ou ignorância ou leviandade. Já em 1925 – ainda Lourenço gatinhava – José Régio arriscava a sua licenciatura, apresentando à conservadora Universidade de Coimbra, uma dissertação sobre as modernas tendências da poesia portuguesa, na qual dava palco generoso aos três argonautas do Orpheu. E aí coroava Pessoa com o estatuto de Mestre. Esta dissertação seria depois publicada, com o título de Pequena História da Moderna Poesia Portuguesa, em 1941. Nesta altura, Lourenço já não andava de bibe, mas tinha apenas 18 anos e, entretanto vigorara a revista Presença, de 1927 a 1940, a qual deu larguíssima atenção e palco a Pessoa e aos seus principais heterónimos. E ignorar Jacinto do Prado Coelho que, com a sua tese seminal – Diversidade e Unidade em Fernando Pessoa – deve ter feito solevar mais do que uma perturbada sobrancelha na Universidade de Lisboa, é mais ou menos tão grave como ignorar personalidades como Jorge de Sena, João Gaspar Simões, Adolfo Casais Monteiro, Teresa Rita Lopes, David Mourão-Ferreira e tantos outros (perdoem-me se os não cito) a quem a aura pessoana tanto deve.
Do mesmo modo, dar ao autor de Labirinto da Saudade os créditos de pioneiro solitário no desvendar de Portugal aos portugueses é cometer outra injustiça de truz: então o Antero das Causas da Decadência dos Povos Peninsulares, o Eça, que tão bem sondou as misérias, os tiques e as cómicas megalomanias da sociedade portuguesa, com uma arte inigualável, o Oliveira Martins do Portugal Contemporâneo, o Miguel Torga, do belíssimo livro Portugal, dos vibrantes e inesquecíveis 16 volumes do Diário e dos contos admiráveis dos Novos Contos da Montanha ou o António Sérgio, dos oito límpidos e clarividentes Ensaios, além de muitas outras notáveis e corajosas intervenções, não colaboraram nada para desvendar Portugal aos portugueses? Nada disto conta? Lourenço veio pisar terra virgem? (Não foi ele quem o disse, foram os seus intemperados aduladores). Olhem que a injustiça é feio pecado e o autor do admirável Sentido e Forma da Poesia Neorrealista não precisa de favores espúrios.
Outro aspeto que gostaria de aqui sublinhar é este: EL aceitou sempre muito mal e de muito mau humor os raríssimos reparos que, em vida, confrontou. Visou sempre, com prodigioso trabalho de formiga, uma saboreada unanimidade, sem vestígios de contraditório. E conseguiu-o, o que não fica bem a um meio cultural adulto. [...]»
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«Discordámos sempre. E em quase tudo, da leitura da história de Portugal à interpretação de Pessoa, das bases da sua sui generis psico-análise ao papel do estruturalismo (e em particular da dupla Foucault/Deleuze), do seu enfoque numa certa bipolaridade matricial do "homem português" aos palpites (e foram tantos!...) sobre o período que se abriu em 1974. [...]»