«A propósito de um texto aqui publicado na semana passada, […] um amigo
arguto e bem treinado nas coisas da política e da literatura lançou-me um
desafio: “Usando o mesmo critério de classificação, não será a concepção do poeta
de Herberto Helder, do lado da magia e do xamanismo, tão de direita como o vate
de Manuel Alegre?”.
[…]
Todas as ilusões alegrianas do
poeta como guia e das valentias poéticas desembocam em teorias neo-clássicas.
Daí, a queda na poetização e na romantização da política, onde reconhecemos
também a cultura da direita tradicional, fundada na cultura de um
pseudoenraizamento mítico. E temos de sublinhar: é sempre pseudo, porque se
trata de uma apropriação fraudulenta e de uma manipulação do mito genuíno.
Em Herberto Helder, estamos noutro lugar completamente
diferente. E é errado fazer dele o retrato de um poeta em fuga num Olimpo, não propriamente
a tocar harpa, mas outro instrumento menos melodioso. Herberto experimentou
quase com uma consciência trágica o que é o desencantamento do mundo e percebeu
muito bem que a poesia, num universo completamente secularizado, tem de ser conquistada
através de um gesto grandioso. Essa conquista implica a concepção de que há um
território do “sagrado”, da “experiência interior” (no sentido de Bataille),
que, por mais escondido que esteja, é o lugar a que a poesia deve aceder. Esse
lugar é o do “terror” e não conhece nenhuma beleza daquelas de que os
neoclassicismos, poetizações, romantizações e estetizações, à maneira da
cultura de direita, tanto gostam. Herberto Helder, penetrando num território não
secularizado, não coincidente com as temporalizações da história, conduz-nos à
relação entre mito e poesia. Pelo contrário, em Manuel Alegre não temos senão
as mitologias do poeta e da poesia — à semelhança da cultura de direita que
pretende sempre transformar a história em mito.
[…]»