na LER de Março de 2012.
"Pastoral Portuguesa", em português actual:
«Algures nos anos 50, depois de combater na Segunda Guerra Mundial, fazer um filho e escrever um livro que cativaria grande parte do mundo, ].D. Salinger (1919-2010) decidiu que a única prova de masculinidade moderna que lhe faltava superar era contrair uma dose cavalar de religião. Tal como Tolstói e L. Ron Hubbard antes dele, depressa percebeu que nenhuma religião disponível cumpria os requisitos mínimos para fazer justiça às suas necessidades e foi forçado a improvisar uma nova: uma miscelânea caótica de dinduísmo, cristianismo e budismo zen, temperada com uma maluquice muito própria e copiosas citações de William Blake, Flaubert, Nietzsche e Kafka.
[…]
a saga da família Glass permite um vislumbre fascinante de um fenómeno muito particular: permite-nos ver quão longe o talento pode fugir na direcção errada.
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Num certo sentido, os Glass são a extrapolação lógica de Holden Caulfield; são Holdens ao cubo. Desesperam, classificam, julgam, sentenciam. São autodidactas éticos. Numa corrente de raciocínio moral menos tributária de qualquer religião do que da psicanálise, as intenções por detrás de cada gesto, mesmo o mais inócuo, são submetidas a um exigente escrutínio, à procura de indícios de corrupção ou “falsidade”. Extremamente bonitos, extremamente inteligentes, extremamente engraçados, extremamente afluentes, e permanentemente paralisados pelas suas sensibilidades hipertróficas, experimentam sucessivas crises de autenticidade (tudo é uma farsa) transmutadas, pela alquimia especial de uma narração indulgente, em crises de identidade.[…]»
- “Franny Glass não come a papa”, sobre Franny e Zooey, de J. D. Salinger
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«[…] Dou-lhe, no entanto, dois conselhos práticos. Comece com David Copperfield, onde o anão é na verdade uma anã, a “volatile” Miss Mowcher: a descrição da mesma a desaparecer debaixo do seu guarda-chuva é um dos grandes momentos de nanismo ilusionista na literatura. […]»
- Consultório literário - “Anões, venham eles”
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«[…] Um novo desenvolvimento surgiu na interseção da física com a disciplina designada como “teoria da informação”: começou a sugerir-se uma partícula elementar de natureza diferente - insubstancial, abstrata, porém talvez “mais substancial que a própria matéria”. John Archibald Wheeler, antigo colaborador de Einstein e Bohr (e o homem responsável por cunhar a expressão “buraco negro”) articulou a sugestão de forma memorável: “it from bit”. Na sua essência, esta doutrina defende que a informação é a substância básica do Universo, e que portanto o funcionamento do mesmo pode ser descrito através de unidades que quantificam informação: aquilo que conhecemos como bits.
[…]
como Shannon admitiu, qualquer comunicação bem-sucedida representa também o necessário triunfo da redundância sobre a ambiguidade. É por esse motivo, já agora, que o facto de qualquer língua escrita estar pejada de redundâncias - consoantes mudas, etc. - não é particularmente problemático de uma perspetiva utilitária: quando a compressão não é um fator determinante, um excesso de sinais reduz a probabilidade de o ruído no canal (uma gralha, um solecismo) corromper a mensagem *. A Wikipédia, que tem direito a um capítulo do livro, é outra ilustração deste princípio contraintuitivo: na maioria dos casos, o processo excruciantce de revisões e correções, transformando cada facto num palimpsesto de percussões tribais, acaba por tornar cada mensagem menos ambígua, mais próxima da realidade. […]»
- “Universo de bits”, sobre Informação – Uma História | Uma teoria | Um Dilúvio, de James Gleick. Em português atual
* Ouviram, seus acordortograficofílicos? Para que saibam.