«Nada contra a pantheonização (palavra bárbara, que nem
um h consegue salvar) de Sophia de Mello Breyner Andresen, mas a cerimónia não
deve ser poupada a uma reclamação: exceptuando o discurso de José Manuel dos Santos, com a sua dose equilibrada de justeza e de tom enfático adequado à circunstância, tudo o resto decorreu por conta do demónio do kitsch. Ele espreitou por todo
o lado, até nos ornamentos artísticos que acompanharam a pompa. Com
grandiosidade estática, ele foi a figura de invocação – a suprema musa – do
discurso de Assunção Esteves, que podemos definir como um extracto farmacêutico, quimicamente depurado, do kitsch resultante da síntese de dois elementos: a “sensibilidade poética” em estado de exaltação e a moral da responsabilidade cívica dos poetas, a que a presidente da Assembleia da
República deu o nome de “ética”, ou seja, nada mais nada menos do que aquilo
que dantes, a léguas da Igreja de Santa Engrácia, se chamava ideologia.
“Sublime” foi a palavra que mais vezes repetiu, até fazer dela um ritornelo.
Tão altas foram as suas palavras que a vertigem das alturas atingiu muitos dos que fizeram o esforço de a ouvir. Aos cumes do sublime e do inefável não se chega sem entusiasmo místico e
neles não se permanece sem cortes na respiração. A poesia nunca foi boa coisa
para o pneuma, por isso é que a tuberculose foi a doença por excelência de quem
elevou a poesia ao absoluto: os românticos. Mas a inclinação de Assunção
Esteves para as alturas estonteantes do cliché e da vazia eloquência teve
correspondência em lugares mais rasteiros e fez coro com uma legião de devotos,
formada por jornalistas e comentadores, que pudemos ouvir nos vários canais de
televisão. De onde vem tanta devoção? Qual a origem desta ideia fanática da
poesia como uma religião civil que, na circunstância presente, encarnou, no seu
grau máximo de evidência, na figura de Sophia?
[...]»