«Minhas senhoras e meus senhores,
Estamos aqui para dar à memória de Sophia de Mello Breyner Andresen altura que ela deu à vida e à poesia que dela foi o centro e o sentido. Estamos aqui porque reconhecemos na sua voz a voz que continua a dizer o que é preciso ser dito. Estamos aqui porque ouvimos essa voz dizer: O poeta escreve para salvar a vida. Acredito que a poesia se opõe por sua própria natureza à degradação. Estamos aqui para lembrar o que Sophia lembrou num tempo subjugado e entregue à ameaça como também é o nosso. Não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas somos por direito natural herdeiros da liberdade e da dignidade do ser. Aqui olhamos o rosto da sua ausência e dizemos o nome lhe foi dado como uma predestinação: Sophia, Sabedoria. Afirmo de novo: não são os poetas que precisam de nós; somos nós que precisamos deles e das suas palavras de vida e de morte. Não é Sophia que precisa de nós; somos nós que precisamos dela como se nesta hora ela fosse o nosso Orfeu e nós dela a Eurídice.
Estamos aqui para dar à memória de Sophia de Mello Breyner Andresen altura que ela deu à vida e à poesia que dela foi o centro e o sentido. Estamos aqui porque reconhecemos na sua voz a voz que continua a dizer o que é preciso ser dito. Estamos aqui porque ouvimos essa voz dizer: O poeta escreve para salvar a vida. Acredito que a poesia se opõe por sua própria natureza à degradação. Estamos aqui para lembrar o que Sophia lembrou num tempo subjugado e entregue à ameaça como também é o nosso. Não somos apenas animais acossados na luta pela sobrevivência, mas somos por direito natural herdeiros da liberdade e da dignidade do ser. Aqui olhamos o rosto da sua ausência e dizemos o nome lhe foi dado como uma predestinação: Sophia, Sabedoria. Afirmo de novo: não são os poetas que precisam de nós; somos nós que precisamos deles e das suas palavras de vida e de morte. Não é Sophia que precisa de nós; somos nós que precisamos dela como se nesta hora ela fosse o nosso Orfeu e nós dela a Eurídice.
A concessão das honras de Panteão Nacional a Sophia de Mello
Breyner Andresen por decisão unânime da Assembleia da República faz da sua
memória um símbolo colectivo mas não faz, nunca fará, de Sophia um escritor
oficial ou um poeta de regime, mesmo daquele, o nosso, que a reconheceu e que
ela reconheceu. Assim é e assim será sempre, porque a poesia de Sophia torna
impossível a sua apropriação, a sua expropriação. Há nela a liberdade livre, a
vida viva, a grandeza nua, o fogo firme que a não deixa ser senão de quem nela encontra
o que ela é. Como se avisasse, Sophia disse: Os centenários, as
homenagens, as comemorações não me parecem muito importantes. A poesia, porque
é real, não precisa de ser oficial; porque é sagrada, não precisa de ser
consagrada; porque é uma necessidade quotidiana, não precisa de dia de anos. É por isso que a entrada de Sophia neste templo em que os
altares dos deuses deram lugar aos túmulos dos homens, é rito, símbolo e sinal.
Tem aquela solenidade, irmã do silêncio e da solidão, que é o contrário da
pompa e da propaganda. Por isso, este acto que celebramos aqui reconhece o que,
com Hölderlin, Sophia afirmava: Aquilo que
permanece os poetas o fundam. Sophia falou da sua poesia como se
marcasse as idades da sua vida. Disse ela: Na minha infância
nem sabia que os poemas eram escritos por pessoas, mas julgava que eram
consubstanciais ao Universo, que eram a respiração das coisas, o nome deste
mundo dito por ele próprio. (...) Sempre a poesia foi para mim a perseguição do real.
E se a minha poesia, tendo partido do ar, do mar e da luz, evoluiu, evoluiu
sempre dessa busca atenta. Quem procura uma relação justa com a pedra, com a
árvore, com o rio, é necessariamente levado, pelo espírito de verdade que o
anima, a procurar uma relação justa com o homem. Aquele
que vê o espantoso esplendor do mundo é logicamente levado a ver o espantoso
sofrimento do mundo. (...) A poesia pede-me que arranque da minha vida que se quebra,
gasta, corrompe e dilui uma túnica sem costura. A poesia de Sophia, que deu à língua
portuguesa a soberania da sua exactidão, é uma arte do ser, uma mnemónica do
mundo, um vértice da vida. O fio que a percorre, feito de claridade e de
assombro, tem três nós de escuridão: o nó da noite, o nó do nada, o nó do não.
Podemos dizer dela o que ela disse de Cesário Verde: Às vezes, algo de rouco, de alucinado
e de visionário atravessa a lucidez dos seus poemas. Na vida de Sofia, os livros sucederam-se como as sílabas da
primeira palavra dita no mundo. Foi dessa palavra que ela fez nascer todas as
palavras da sua poesia. Com Homero, Sophia aprendeu a ver, com Dante, a
imaginar, com Shakespeare, a perscrutar, com Hölderlin, a sagrar; com eles
aprendeu a ser ela. Esta poesia acredita nos poderes da poesia. É medida e
fúria, ânsia e serenidade, evidência e decifração. Procura a unidade e a
inteireza, afronta a excomunhão e a divisão, a fractura e a falha. Liga, religa
e comunga. Alia o caos e o cosmos, o mundo antigo e o mundo moderno, Ulisses e
Cristo, o mito e a realidade, a gravidade e a graça, a claridade e o mistério,
a felicidade e o terror.
No canto de Sophia, há o grandioso encontro de uma grande
cultura com as suas origens e os seus ocasos, com as suas restituições e as
suas rasuras, com os seus crimes e os seus cumes. Neste canto, o passado é a
grande pergunta do futuro. No século XX português, Sophia e Fernando Pessoa são
o verso e o reverso da moeda com que os deuses vendem o que dão. Com Pessoa ela
travou um magnífico duelo que é um dos mais violentos diálogos da nossa
cultura. Os poemas, os ensaios, o conto inacabado que tem Pessoa como centro,
são o grande frente-a-frente de Sophia com esse Édipo que decifra os enigmas
fazendo deles o espelho que nos rouba o rosto. Ela invectiva Pessoa: Pudesse o instante da festa romper o
teu luto, ó viúvo de ti mesmo!, mas num texto que está entre os seus papéis figura-o. Pessoa surge, diz ela, discreto, tímido,
solitário, embiocado, meticulosamente delicado, racional e visionário,
escondendo um duplo pudor, a lúcida consciência do seu próprio génio e a sua
humanidade desmantelada pelas fúrias.
Minhas senhoras e meus senhores,
Sophia contou assim: Em 25 de Abril de 1974, às quatro e meia da manhã, um amigo telefonou-me dizendo que abríssemos o rádio, pois havia uma revolução. O quarto em que ouvíamos o rádio tinha uma porta de vidro que dava para o jardim e à medida que víamos a revolução avançar, e construir-se, víamos crescer a claridade do dia e sentíamo-nos emergir das trevas e do opaco. Foi para nós mais do que uma revolução; foi uma ressurreição. Era Páscoa, vi um povo inteiro habitar a transparência, vi multidões dançar de liberdade. Às vezes, olhávamo-nos uns aos outros e perguntávamos uns aos outros "Será que estamos a sonhar?" E um amigo disse "Mesmo que esta revolução falhe, mesmo que tudo acabe em desastre, nós vivemos isto". Pois o 25 de Abril era para nós mais do que uma libertação política; era a libertação da vida, a renovação do mundo. Por isso escrevi
Há nestas palavras a veemência de um começo, a vontade de um recomeço. Sophia, a Antígona portuguesa, cita a Antígona grega fazendo dessa citação um selo com o mundo: "Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres". Por isso, no país do medo, os seus poemas não tinham medo e, no tempo da cobardia, a sua coragem não aceitou o inaceitável. Por isso, na Assembleia Constituinte a sua voz ergueu-se e falou do que permanece. Por isso, ela disse um dia: Aos pobres de Portugal é costume dizer "Tenham paciência.", mas na verdade devemos dizer-lhes "Não tenham paciência!".
Agora lembro, oiço, vejo. Olho-a desenhada pelos seus próprios gestos e pela elegância deles. Oiço-a a falar de Pascoaes, de Torga, de Eugénio de Andrade, de Vieira da Silva, de Menez, de João Cabral de Melo Neto, de Manuel Alegre. Vejo-a na casa da Travessa das Mónicas, aqui bem perto, a mostrar-me os azulejos do filho Xavier com uma alegria sem recuo. Oiço-a citar Maria Velho da Costa quando ela falava dos "visionários do visível", e Eduardo Lourenço — aqui presente, que saúdo —, citando também: "em sentido radical, não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo dizer supremo". Lembro os passos da sua dança sobre o mundo e por isso esta cerimónia vai ser atravessada pelo voo dos bailarinos que a deslumbrava. Há uma carta dela à mãe a falar do "Lago dos Cisnes", que veremos a seguir, como de uma felicidade. Recordo a sua arte de contar histórias e a malícia com que as contava. Oiço-a dizer com magnífica ironia: Não fazer nada exige muito tempo, pois fazer nada é uma coisa que não se pode fazer depressa. Lembro a sua distracção de tudo menos do que valia a pena. Oiço Agustina falar dela com um louvor tão raro que era quase uma rendição. Vejo Cesariny a visitá-la, quando o fim se aproximava, e a falar-lhe com um silêncio tão puro que se podia respirar. Lembro Ruy Cinatti a contá-la como quem conta um segredo. Vejo-a iluminada pela amizade e pelos relâmpagos da raiva de Jorge de Sena. Evoco Francisco Sousa Tavares, aquele que lhe ensinou "a coragem e a alegria do combate desigual". Lembro-a, lembro-os, e digo com ela, e digo por ela:
Assim pudesse o tempo regressar
Recomeçarmos sempre como o mar.
Minhas senhoras e meus senhores,
Sophia contou assim: Em 25 de Abril de 1974, às quatro e meia da manhã, um amigo telefonou-me dizendo que abríssemos o rádio, pois havia uma revolução. O quarto em que ouvíamos o rádio tinha uma porta de vidro que dava para o jardim e à medida que víamos a revolução avançar, e construir-se, víamos crescer a claridade do dia e sentíamo-nos emergir das trevas e do opaco. Foi para nós mais do que uma revolução; foi uma ressurreição. Era Páscoa, vi um povo inteiro habitar a transparência, vi multidões dançar de liberdade. Às vezes, olhávamo-nos uns aos outros e perguntávamos uns aos outros "Será que estamos a sonhar?" E um amigo disse "Mesmo que esta revolução falhe, mesmo que tudo acabe em desastre, nós vivemos isto". Pois o 25 de Abril era para nós mais do que uma libertação política; era a libertação da vida, a renovação do mundo. Por isso escrevi
Há nestas palavras a veemência de um começo, a vontade de um recomeço. Sophia, a Antígona portuguesa, cita a Antígona grega fazendo dessa citação um selo com o mundo: "Eu sou aquela que não aprendeu a ceder aos desastres". Por isso, no país do medo, os seus poemas não tinham medo e, no tempo da cobardia, a sua coragem não aceitou o inaceitável. Por isso, na Assembleia Constituinte a sua voz ergueu-se e falou do que permanece. Por isso, ela disse um dia: Aos pobres de Portugal é costume dizer "Tenham paciência.", mas na verdade devemos dizer-lhes "Não tenham paciência!".
Agora lembro, oiço, vejo. Olho-a desenhada pelos seus próprios gestos e pela elegância deles. Oiço-a a falar de Pascoaes, de Torga, de Eugénio de Andrade, de Vieira da Silva, de Menez, de João Cabral de Melo Neto, de Manuel Alegre. Vejo-a na casa da Travessa das Mónicas, aqui bem perto, a mostrar-me os azulejos do filho Xavier com uma alegria sem recuo. Oiço-a citar Maria Velho da Costa quando ela falava dos "visionários do visível", e Eduardo Lourenço — aqui presente, que saúdo —, citando também: "em sentido radical, não há nada a dizer de um poema, pois é ele mesmo dizer supremo". Lembro os passos da sua dança sobre o mundo e por isso esta cerimónia vai ser atravessada pelo voo dos bailarinos que a deslumbrava. Há uma carta dela à mãe a falar do "Lago dos Cisnes", que veremos a seguir, como de uma felicidade. Recordo a sua arte de contar histórias e a malícia com que as contava. Oiço-a dizer com magnífica ironia: Não fazer nada exige muito tempo, pois fazer nada é uma coisa que não se pode fazer depressa. Lembro a sua distracção de tudo menos do que valia a pena. Oiço Agustina falar dela com um louvor tão raro que era quase uma rendição. Vejo Cesariny a visitá-la, quando o fim se aproximava, e a falar-lhe com um silêncio tão puro que se podia respirar. Lembro Ruy Cinatti a contá-la como quem conta um segredo. Vejo-a iluminada pela amizade e pelos relâmpagos da raiva de Jorge de Sena. Evoco Francisco Sousa Tavares, aquele que lhe ensinou "a coragem e a alegria do combate desigual". Lembro-a, lembro-os, e digo com ela, e digo por ela:
Assim pudesse o tempo regressar
Recomeçarmos sempre como o mar.
Minhas senhoras e meus senhores,
A entrada de Sophia no Panteão Nacional, nos dez anos da sua morte e nos quarenta anos do 25 de Abril, confirma as palavras que dizem a sua vida — poesia, liberdade, justiça — como três razões para que os homens se possam olhar nos olhos. Para Sophia, os poemas, mais do que para ser lidos, são para ser ditos. Assim, penso que não diminuo a solenidade e o sentido desta cerimónia, antes os acrescento e reforço, se vos convidar a que digam comigo o poema "Coral", que é uma das insígnias da sua arte poética:
Ia e vinha
E a cada coisa perguntava
Que nome tinha.