sábado, 26 de julho de 2014

"Sendo que"

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Trata-se, digamos com ênfase e presunção, de isolar uma praga da linguagem, um apêndice sintáctico "duro e resistente como o granito", para utilizarmos as palavras que serviram a Hannah Arendt para definir a estupidez. E agora que a "coisa" já começou a ganhar alguma dignidade, por via da citação culta, é altura de nomeá-la: trata-se da conjunção "sendo que", em regime de proliferação desde há já bastante tempo no medialecto, isto é, no dialecto próprio dos media em sentido lato (na imprensa, na rádio e na televisão).
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Em todos os casos, agora que entrou no medialecto e ganhou a condição de um espasmo colectivo, ["sendo que"] não consegue ser mais do que um tique gerundivo que se apanha por mimetismo.
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"Sendo que" é uma forma torpe, equivale a uma injunção mecânica e a um reflexo mimético, abre um espaço liso no momento em que surge, contamina tudo à sua volta e torna-se motivo para uma suspeita mais funda: a de que não é uma pequena anomalia, um momento pontual em que sucumbe o discurso e é rasurado qualquer vestígio de algo a que possamos chamar ideia ou pensamento. Pelo contrário, o "sendo que" torna plausível a suspeita de que a anomalia pode estar por todo o lado, antes e depois. O tique correspondente ao “sendo que” é como um esgar lançado ao leitor, ao espectador, ao ouvinte, ao interlocutor, e funciona como o estereótipo, é dotado de uma forma de vida parasitária, expande-se e multiplica-se por incrustação. A longa vida do "sendo que" e a sua capacidade de se difundir encerram um mistério: porque é que há palavras e expressões que "pegam" e se tornam uma praga? Onde está a origem, a fonte do caudal que vai engrossando? O que há nessas palavras e expressões que as torna tão obrigatórias e faz com que elas passem a ser repetidas sem moderação?
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Ainda de António Guerreiro, no Público/Ípsilon de hoje:
«Dois nomes centrais do cânone filosófico e do cânone literário [Kant e Goethe] lidos por uma autora que sempre se moveu em zonas de confins. [...]»