«Lisboa, menina e moça vai passar a ser a canção oficial da capital portuguesa. É a homenagem da cidade ao fadista Carlos do Carmo, que morreu na sexta-feira, aos 81 anos.
Foi uma decisão unânime dos vereadores da autarquia, de todos os partidos, num gesto inédito, revelou esta manhã o presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina. No fundo, é tornar oficial aquilo que o povo há muito já fez.»
Não sei a quem, e quando*, ocorreu o inspirado trocadilho "Lisboa, Medina e moça" com que acabo de me deparar num tuíte de Rodrigo Moita de Deus, de 04.Jan.2021. Na circunstância da notícia supra, não poderia ser mais oportuno e apropriado. Parabéns, Rodrigo.
Desta vez, não é para importunar Fernando Medina que aqui venho, muito menos contrariar — ai de mim! — o povo.
É de supor a trabalheira de pesquisa e cotejo por parte dos denodados vereadores, até chegar à decisão, ponderando democrática e igualitariamente, sem preconceito estético ou ideológico, sobre o acervo imenso de cantigas com Lisboa por tema ou fundo — de que aqui, por exemplo, vai sumária mas significativa amostra — , não fosse escapar-lhes algum título porventura mais adequado a hino da capital.
O povo oficializou, a vereação decidiu, Medina promulgou, proceda-se em conformidade.
Mas sempre direi que se, por loucura ou descuido dos deuses, tivesse voto na matéria, a minha escolha iria para uma deslumbrante, falo a sério, e obscura** composição de José Cid, de 1971, com arranjo magnífico de José Calvário, que nasce em «Lisboa ...» e desagua num proceloso «... autoclismo»:
«Lisboa tem um Tejo de ilusões
[...]
Reparem no pregão desta varina,
no fado em dó menor mas incompleto,
na ponte, no castelo, no deserto,
neste tremor de terra, cataclismo,
quiçá um maremoto de autoclismo.»
Repare-se na subida às alturas, de Ré menor para Mi menor, ao fim de três segundos de silêncio. A voz de José Cid fresca como nunca.
Que tal, ãi?
Só oponho uma pequenina reserva à pronúncia pouco canónica de José Cid da palavra «maremoto». Mas isso remediar-se-ia na gravação do hino oficial de Lisboa por um intéprete de melhor dicção. No impedimento de Carlos do Carmo, ausente em parte incerta, estava capaz de sugerir o Frei Hermano da Câmara, se bem que Medina preferisse sempre o Camané que fez parte da célebre comissão dos arquitetos, e coisas dessas retribuem-se.
Outras versões de "Lisboa perto e longe" que não troco, qualquer delas, pela original de 1971:
- Tonicha [1972]. Curiosa e estranhamente, Tonicha, a terminar, também canta «maremoto» com o 'e' aberto de «maré»;
- José Cid, com Waldemar Bastos [2001]. Cedendo, apetece dizer Cidendo, à conveniência comercial de uma putativa maior suavidade metafórica, José Cid substituiu — estragou lastimavelmente —, nesta versão, o fantástico último verso «quiçá um maremoto de autoclismo» por um anódino «e ao longe o mar e mais ao longe o abismo». Contrafacção imperdoável. Já vi chamar a ASAE por menos.
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* Vejo que é usado desde pelo menos 2018.
** Quando revia o verbete, ao passar pela «obscura composição» lembrei-me deste «Disco obscuro editado em 1974 ...».
Está à venda na net por 24,99 €. Embora reconheça a pechincha jamais o compraria. Abomino preços em 9 ... e peço humildemente perdão pela invasão na minha gloriosa biografia.
Ahahah.