segunda-feira, 18 de maio de 2015

Acordo Ortográfico [92]

«Anacleto estava radiante. Já lhe tinham dito lá na repartição mas ele não acreditava. No dia 13, o das aparições lá de Fátima, já podia escrever com menos letras, que alívio. Agora era lei, já não podiam gozar com ele quando escrevia “coação” e lhe perguntavam onde é que tinha comprado o coador. Só podia ser mesmo bênção dos pastorinhos. Ele tinha-se informado, sabia tudo. Até ao dia 13, havia na escrita portuguesa duas ortografias. Uma para Portugal e outra para o Brasil. Um excesso! Agora, a partir de dia 13, passa a haver só duas ortografias. Reparem bem na subtileza: duas e “só duas”.
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Claro que nem toda a gente ia aceitar aquilo, havia muitos conspiradores, sediciosos, sempre prontos a pôr em causa os altos interesses da Pátria. Para isso, ele tinha um remédio: o capitão Windows.
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O capitão Windows ri-se do matraquear no teclado e corrige as más vontades. Só dedos muito atentos e hábeis conseguem despistá-lo. Mas até esses hão-de cansar-se, vão ver!
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o general Bertoldo Klinger (1884-1969), que assinava “jeneral Klinjer” e que, muito antes de apoiar o golpe que instaurou a ditadura em 1964, escreveu uma ousada obra intitulada Ortografia Simplificada Brazileira. Aí, dando largas à ortografia que ele próprio inventara, escreveu: “Etimolojia e Uso têm seu relevante papel, sine qua non, na constituisão, no recrutamento do vocabulário; feito isso, termina, porêm, seu papel: entra em asão a Ortografia, para ficsar fielmente para os olhos o ce a boca emitiu, o ouvido persebeu. Portanto, a Ortografia alfabética só póde ser pronunsiativa, fonética. Seu instrumento é o Ortoalfabéto, de símbolos nesesários e bastantes, sônicos, simples, diretos e imvariáveis. Direto, cér dizer ce o nome do símbolo é ezatamente o do próprio fonema ce ele representa.” 
Anacleto entrara em êxtase.
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Nuno Pacheco, "O capitão Windows e o general Klinger" | Público, P2, 17.Mai.2015

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o absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os estragos serão mais significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a sua língua. É que o Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas nem, do meu ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de um acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa, é um acto político e as suas consequências são identitárias. Não me parece aliás que colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que farmácia já se escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e nacionais da actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos Acordos anteriores.
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Esta comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta em causa quando a engenharia burocrática da língua a afasta da sua marca de origem, mesmo que essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão visíveis nas palavras. As palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.
O AO é mais um passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades, contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas tradições. Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços e ignorantes, neste e nos governos anteriores, que naturalmente são indiferentes a esse património que eles consideram caduco, ultrapassado e dispensável.
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José Pacheco Pereira, "Os apátridas da língua que nos governam" | Público, 16.Mai.2015

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Milagre! Três vezes milagre! Glória aos deputados que com o seu voto permitiram o AO. Glória aos acordistas que nos salvaram da babel. Glória ao ministro que o decretou obrigatório nas escolas. Louvor e graça a todos os que tornaram as palavras irreconhecíveis. E um aplauso especial para aqueles que, em nome da sacrossanta unificação, onde havia duas grafias nos ofereceram de borla três ou quatro (ou mesmo cinco: deíctico/deítico/dêictico/dêítico/díctico). Salve!
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Interrutor já temos e homologado.
Agora alguém que apague a luz.»
Ana Cristina Leonardo, "Orgulhosamente sós" | Expresso/E, 16.Mai.2015

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a estupidez a impor pela força o que não consegue impor pela razão.
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Miguel Sousa Tavares | SIC, 13.Mai.2014

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Agradeço a continuação das provisórias tréguas, permitindo-me continuar a escrever nessa língua luminosa que é o português herdado dos meus antepassados e não nessa língua de trapos, nessa caricatura de português, congeminada pelos sábios linguistas que se autodeclararam donos da língua e que, por facto consumado e demissão colectiva dos responsáveis políticos, a impuseram à força a todos nós. Um dia, espero bem, alguém fará a história desta congeminada traição ao nosso património, da arrogante incompetência que a promoveu e da estarrecedora inércia que a consentiu, por mera ignorância e terror de enfrentar os “mestres”.
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sugiro ao candidato presidencial Sampaio da Nóvoa, que afanosamente procura um passado de ideias que não se conhecem e um presente de ideias que se entendam (qualquer mais concreta do que declarar-se, por exemplo, um transportador de desassossegos), que abrace esta causa, jurando-nos que, se eleito, tudo fará para pôr fim a este pesadelo. Já terá valido a pena a candidatura.
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