«Anacleto
estava radiante. Já lhe tinham dito lá na repartição mas ele não acreditava. No
dia 13, o das aparições lá de Fátima, já podia escrever com menos letras, que
alívio. Agora era lei, já não podiam gozar com ele quando escrevia “coação” e
lhe perguntavam onde é que tinha comprado o coador. Só podia ser mesmo bênção
dos pastorinhos. Ele tinha-se informado, sabia tudo. Até ao dia 13, havia na escrita
portuguesa duas ortografias. Uma para Portugal e outra para o Brasil. Um
excesso! Agora, a partir de dia 13, passa a haver só duas ortografias. Reparem bem na
subtileza: duas e “só duas”.
[…]
Claro
que nem toda a gente ia aceitar aquilo, havia muitos conspiradores, sediciosos,
sempre prontos a pôr em causa os altos interesses da Pátria. Para isso, ele
tinha um remédio: o capitão Windows.
[…]
O
capitão Windows ri-se do matraquear no teclado e corrige as más vontades. Só
dedos muito atentos e hábeis conseguem despistá-lo. Mas até esses hão-de
cansar-se, vão ver!
[…]
o
general Bertoldo Klinger (1884-1969), que assinava “jeneral Klinjer” e que,
muito antes de apoiar o golpe que instaurou a ditadura em 1964, escreveu uma
ousada obra intitulada Ortografia
Simplificada Brazileira. Aí, dando largas à ortografia que ele
próprio inventara, escreveu: “Etimolojia
e Uso têm seu relevante papel, sine qua non, na constituisão, no recrutamento
do vocabulário; feito isso, termina, porêm, seu papel: entra em asão a
Ortografia, para ficsar fielmente para os olhos o ce a boca emitiu, o ouvido
persebeu. Portanto, a Ortografia alfabética só póde ser pronunsiativa,
fonética. Seu instrumento é o Ortoalfabéto, de símbolos nesesários e bastantes,
sônicos, simples, diretos e imvariáveis. Direto, cér dizer ce o nome do símbolo
é ezatamente o do próprio fonema ce ele representa.”
Anacleto entrara em êxtase.
Anacleto entrara em êxtase.
[…]»
Nuno Pacheco, "O capitão Windows e o
general Klinger" | Público, P2, 17.Mai.2015
- x -
«[…]
o
absurdo do zelo português num AO falhado e que nos isolará ainda mais. Onde os
estragos serão mais significativos é em Portugal, para os portugueses, e para a
sua língua. É que o Acordo Ortográfico não é matéria científica de linguistas
nem, do meu ponto de vista, deve ser discutido nessa base, porque se trata de
um acto cultural que não é técnico, e como acto cultural em que o Estado participa,
é um acto político e as suas consequências são identitárias. Não me parece
aliás que colha o historicismo habitual, como o daqueles que lembram que
farmácia já se escreveu “pharmácia”, porque as circunstâncias políticas e
nacionais da actualidade estão muito longe de ser comparáveis com as dos
Acordos anteriores.
[…]
Esta
comunicação entre uma língua e a cultura que transporta é posta em causa quando
a engenharia burocrática da língua a afasta da sua marca de origem, mesmo que
essas marcas sejam “mudas” na fala, mas estão visíveis nas palavras. As
palavras têm imagem e não apenas som, são vistas por nós e pela nossa cabeça, e
essa imagem “antiga” puxa culturalmente para cima e não para baixo.
O AO é
mais um passo no ataque generalizado que se faz hoje contra as humanidades,
contra o saber clássico e dos clássicos, contra o melhor das nossas tradições.
Não é por caso que ele colhe em políticos modernaços e ignorantes, neste e nos
governos anteriores, que naturalmente são indiferentes a esse património que
eles consideram caduco, ultrapassado e dispensável.
[…]»
José
Pacheco Pereira, "Os apátridas da língua que nos governam" | Público,
16.Mai.2015
- x -
«[…]
Milagre!
Três vezes milagre! Glória aos deputados que com o seu voto permitiram o AO.
Glória aos acordistas que nos salvaram da babel. Glória ao ministro que o
decretou obrigatório nas escolas. Louvor e graça a todos os que tornaram as
palavras irreconhecíveis. E um aplauso especial para aqueles que, em nome da
sacrossanta unificação, onde havia duas grafias nos ofereceram de borla três ou
quatro (ou mesmo cinco: deíctico/deítico/dêictico/dêítico/díctico). Salve!
[…]
Interrutor
já temos e homologado.
Agora
alguém que apague a luz.»
Ana
Cristina Leonardo, "Orgulhosamente sós" | Expresso/E, 16.Mai.2015
«[…]
a estupidez a impor pela força o que não consegue impor pela razão.
[…]»
a estupidez a impor pela força o que não consegue impor pela razão.
[…]»
Miguel Sousa Tavares | SIC, 13.Mai.2014
- x -
«[…]
Agradeço a continuação das provisórias
tréguas, permitindo-me continuar a escrever nessa língua luminosa que é o
português herdado dos meus antepassados e não nessa língua de trapos, nessa
caricatura de português, congeminada pelos sábios linguistas que se
autodeclararam donos da língua e que, por facto consumado e demissão colectiva
dos responsáveis políticos, a impuseram à força a todos nós. Um dia, espero
bem, alguém fará a história desta congeminada traição ao nosso património, da
arrogante incompetência que a promoveu e da estarrecedora inércia que a
consentiu, por mera ignorância e terror de enfrentar os “mestres”.
[…]
sugiro ao candidato presidencial Sampaio da Nóvoa, que afanosamente
procura um passado de ideias que não se conhecem e um presente de ideias que se
entendam (qualquer mais concreta do que declarar-se, por exemplo, um
transportador de desassossegos), que abrace esta causa, jurando-nos que, se
eleito, tudo fará para pôr fim a este pesadelo. Já terá valido a pena a
candidatura.
[…]»