«A última vez que o vi foi na Casa do Alentejo, num jantar de apoio à candidatura de Jorge Sampaio à Presidência da República. Não o reconheci, de imediato: o cancro devorava-o, era uma sombra do que fora. Ao lado, sua mulher, Pilar, e os dois mantinham o porte sereno e digno. Conversou, fumou cachimbo, bebeu uísque, no ritual cortês e delicado que o caracterizava. Um homem a sorrir à morte, e embora dilacerado pelo escândalo de saber do seu próprio fim, mantinha a discrição e o pudor. David Mourão-Ferreira, digo.
Lembrei-me do episódio, agora, que li, na revista dominical do Público, uma entrevista a seu filho. O grande poeta percorreu a vida com a elegância antiga que marca o destino dos que são modernos sem nunca deixar de ser clássicos. Há poucos desta estirpe. O filho, também David, como o pai e o avô, fornece comovente perfil de um homem complexo, solitário mas também povoado pela força de um querer no qual o amor procura o seu particular infinito.
[...]
Revisitei os seus poemas, lidos, tanta vez, em voz alta, e reencontrei-me com um artista invulgar, para quem os valores da diversidade eram a questão central da existência num mundo cada vez mais flutuante e ausente na compostura.»
«O meu pai sempre manteve um tom de assombramento.»
* Pena o triplicado erro ortográfico em “neorealista(s)”, pouco compreensível no B-B.